O MENINO VALENTIN
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27 de julho de 2004

 

Numa leitura simples, Valentin (2002), realização argentina de Alejandro Agresti, é uma crônica bastante convencional das memórias de infância de um garoto apartado da mãe desaparecida, criado por uma avó e que de quando em quando dá com seu namorador pai. O espectador vai vendo com simpatia o desenvolvimento das lembranças do menino, mas tudo no filme torna-se incapaz de empolgá-lo. Queimando ao vento (2001), do italiano Silvio Soldini, também trata de matéria de evocação infantil (embora feita na idade adulta); mas, sofisticando seu processo narrativo já a partir duma elaborada fotografia, Soldini embaralha o lugar-comum. O argentino Agresti assume decididamente a rotina formal e temática de um filme, fiando-se que algo invisível possa atingir a sensibilidade do observador.

É o que acontece. Lá pelas tantas, de tanto insistir nos pequenos detalhes das personagens, Valentin eleva seu nível para além daquilo que parecia prometer. Como numa história contada pelo japonês Yasujiro Ozu ou pelo francês François Truffaut (ressalvado todo o exagero da comparação com estes mestres do cinema), a coisa simples adquire uma inesperada grandeza humana.

É certamente o mais importante filme argentino lançado em Porto Alegre há muitos anos. A atuação do garoto Rodrigo Noya é irremarcável pelo seu grau ternura e sinceridade. Carmen Maura, atriz habitual do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, foi transfigurada numa velha avó pela caprichada produção de película platina; e Maura, sabe-se, é uma intérprete e tanto. Registre-se a aparição do próprio diretor Agresti na pele dum padre católico, numa cena em que ele, enfrentando a ira da classe dirigente que na verdade sempre sustentou o clero, discursa homenageando a Ernesto Guevara, que havia sido morto há pouco na Bolívia; é bom pensar neste breve e iconoclasta trecho quando ainda está em cartaz por aqui a cinebiografia que o brasileiro Walter Salles Jr. fez do guerrilheiro argentino.

Demais, é bom lembrar que Agresti evita as pieguices e os ridículos mesmo em seqüências perigosamente para tanto, como as da obsessão de Valentin por ser astronauta. Breve fábula de memória, Valentin merece um destaque no presente ano cinematográfico.

Por Eron Fagundes