02
de maio de 2005
O realizador
bósnio Emir Kusturica volta a criar imagens intensamente
barrocas e notavelmente surrealistas para expressar uma visão
metafórico-cinematográfica dos conflitos fratricidas
na Bósnia em A vida é um milagre (2004). Uma nota
abaixo da obra-prima Underground (1995), de onde emergiu o assunto
da guerra iugoslava e de cuja narrativa certas obsessões
retornam (as bombas formam um suntuoso contraponto com a sexualidade
provocativamente torpe das personagens), a nova realização
de Kusturica é mesmo assim um dos espetáculos mais
gratificantes da atual temporada de cinema; ao longo de suas
quase duas e meia de projeção, A vida é um
milagre mostra quão bela é a loucura de viver,
ainda que todos os dados possam parecer contrários aos
indivíduos.
Herdeiro
do italiano Federico Fellini, Kusturica costura com grande segurança a fusão dum olhar realista para
o tenso universo étnico que retrata, com uma opção
por uma encenação da fantasia que o cinema permite;
a cama do casal apaixonado chega a desprender-se de seu cenário
e voar livremente numa seqüência, celebrando inocentemente
o amor. Aliás, A vida é um milagre é um
cenário é eternamente convulso, adaptando-se ao
nervosismo das criaturas que precariamente convivem com seus
dilemas.
A
paixão do sérvio Luka e da muçulmana Sabaha
vai ajudar a preencher as cores de impacto que sobrevoam as imagens
de A vida é um milagre; e a cena em que se divertem e
se amam na brumosa visão duma queda-d’água é o
signo da alegria de viver e de filmar de Kusturica e de suas
personagens ou atores. Há muita coisa persistentemente
inquietante no filme, como o nebuloso jogo de futebol que termina
numa pancadaria de pastelão; e um carro que estranhamente
roda sobre os trilhos da linha férrea como se fosse um
trem. E que dizer do burrinho que chora (apaixonado?) que se
recusa a sair do caminho do trem? É certamente um estribilho
visual, algo ingênuo, mas comovente.
Acusado
atualmente de incapaz de renovar-se, como aconteceu a Fellini
na fase final de sua filmografia, Kusturica permanece
um oásis pessoal no ramerrão de obviedades em que
o cinema de hoje navega.
Por Eron Fagundes
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