28 de outubro de 2007
Sabe-se que, de um ponto de vista rigoroso, o cinema é uma vigarice. Quando quem comanda esta vigarice são gênios como o norte-americano Orson Welles ou o francês Jean-Luc Godard, chamamos a esta vigarice arte; mas pode esta arte-vigarice equiparar-se a suas nobres antecessoras? O sueco Lasse Halström faz um auto-retrato em O vigarista do ano (The hoax; 2007); cada vez mais americanizado, este sueco que nunca foi um bom diretor (apesar de acertos isolados em determinados filmes) topa sua atual imagem cinematográfica na evocada figura de Clifford Irving que no começo da década de 70 inventou uma autobiografia do recluso milionário Howard Hughes (retratado em O aviador, 2004, rodado pelo norte-americano Martin Scorsese) para extorquir muitos dólares duma revista sensacionalista da época.
O vigarista do ano é um filme tão picareta e falso quanto sua personagem central. Enquanto se entrega a uma forma de entretenimento bastante vazia, vai tecendo algumas anotações daquela época, vendo no caso Irving o germe do escândalo Watergate e apontando para um olhar deveras nebuloso do comportamento da imprensa americana. Em A primeira página (1974) o vienense Billy Wilder é muito mais agudo em expor os tortuosos caminhos do jornalismo interessado em faturar com uma notícia, mesmo que fabricada ou à custa da exposição cruel das pessoas reais. O vigarista do ano mistifica todas estas questões; não sabe lidar com a vigarice do cinema, pisa nas minas, desaba. No fundo, bem no fundo, toda arte é um entretenimento fútil; e escrever sobre uma obra de arte é uma espécie de sociologia de bar. Wilder, como ninguém, soube, em A primeira página, tornar a visão crítica aliada do divertimento. Cidadão Kane (1941) tem chavões populares do radioteatro americano dos anos 30 que a imponência de Welles transformou numa outra coisa tão pouco popular. O vigarista do ano não diz bem a que veio, mas é fácil de ver e, percebe-se, Halström está aprendendo bem a gramática dos colonizadores. Richard Gere, dizem, tem seu melhor desempenho, mas isto não serve muito, pois os trejeitos interpretativos de Gere vão ficando cada vez mais maneiristas. O cineasta é sempre um mentiroso, como queria o italiano Federico Fellini, mas bem que poderia mentir com muito mais magia: o mágico pode ser um vigarista mais aceito.
Se não tem jeito mesmo, se o cinema tem de ser esta vigarice que aí está, pelo menos que esta vigarice seja explorada com a espantosa lucidez formal de Santiago (2007), o documentário brasileiro de João Moreira Salles. Que é isto que chamamos cinema que engloba os trêfegos fotogramas de O vigarista do ano e permite a Moreira Salles criar os planos moralmente mais perversos do atual cinema brasileiro?
Por
Eron Fagundes