A EXACERBAÇÃO
TEATRAL DA LINGUAGEM DE OLIVEIRA
Como no francês
Robert Bresson e mais ainda no japonês Yasujiro Ozu, os filmes do português
Manoel de Oliveira se constroem de muitos planos fixos -rigorosos e secos-que
exigem do espectador uma reeducação do olhar; atenção para detalhes, para as
condutas dos atores, para a inserção do raciocínio verbal na plástica da imagem.
Em Vou para casa (Je rentree à la Maison; 2001), rodado em francês para
o produtor luso Paulo Branco (uma espécie de Mecenas de algumas obras européias
não-comerciais e nome habitual nos trabalhos recentes de Oliveira), a aridez
de filmar do cineasta se evidencia mais do que nunca; destituído de qualquer
emoção epidérmica, o novo Oliveira, trazido à programação pelo complexo de salas
recentemente inaugurado do Unibanco Arteplex, só vai topar seu observador mais
interessado naquela cabeça fascinada por despojamentos, tiradas intelectuais
e um jeito de filmar que mistura maravilhosamente teatro e cinema. Arte para
poucos é o que faz Oliveira: no ano passado, quando fui ver Inquietude (1998),
minha acompanhante dormiu em meu ombro enquanto eu assistia fascinado ao rigoroso
desenrolar dos quadros; agora, ao dar com Vou para casa, só três espectadores
havia na sessão a que compareci.
De que trata mesmo Vou
para casa? É uma reflexão sobre a velhice quando pousada em um grande artista.
O velho ator interpretado por Michel Piccoli (visto em dois filmes da Mostra
Godard da Mário Quintana - O desprezo, 1963, e Passion, 1982)
começa a narrativa compondo uma personagem de Ionesco numa encenação teatral;
vai terminá-la como um pobre substituto dum ator acidentado numa produção cinematográfica
americana independente que recria o Ulysses (1922), do romancista irlandês
James Joyce. Os primeiros quadros estaticamente teatrais da peça de Ionesco
dentro do filme estabelecem a dinâmica da linguagem de toda a realização, mesmo
quando o cenário se abre para a cidade e a história da tragédia da personagem
(que tem de criar seu pequeno neto sozinho, pois a família morreu em acidente
automobilístico) alarga os limites temáticos. A relação do protagonista com
o neto só vai aparecer lá pelo meio da projeção; o que interessa mesmo a Oliveira,
velho e soberbo cineasta, é expor a alma de um grande artista cujo fim de vida
o coloca numa situação intrigante que o faz sair do set de filmagem exclamando:
"Vou para casa!" É melancólica mas áspera a imagem da personagem vagando por
uma Paris com a qual ela nada tem a ver, murmurando o texto de Joyce como se
fosse uma criatura viva do irlandês -Dublin-Paris.
Manoel de Oliveira é extraordinário
em captar algumas rotinas de comportamento, no que ele lembra o nipônico Yasujiro
Ozu, como naquelas cenas que se repetem intersticialmente no interior dum café,
que vemos através de um vidro: dois homens, um deles o protagonista, gestos
rotineiros, beber o café, ler eternamente o mesmo jornal (observemos que até
as manchetes são as mesmas, Oliveira nem se dá o trabalho de trocar o dia do
jornal). Igualmente curiosa é a composição de diretor de cinema que Oliveira
extrai do ator norte-americano John Malkovich, que já trabalhou com o realizador
lusitano em O convento (1995), um dos mais belos filmes da década passada,
em que contracenava com a francesa Catherine Deneuve, também presente neste
Vou para casa como uma das tortuosas figuras de Ionesco na peça do início
da narrativa de Oliveira.
Por Eron Duarte
Fagundes