O FIM DA
DOCE VIDA - Com As noites de Cabiria (1957) o cineasta
italiano Federico Fellini encerrava a fase neo-realista
de sua obra, em que sua forma cinematográfica,
conquanto muito pessoal e barroca, era mais natural,
as personagens nem tão vertiginosas e sua visão
da sociedade determinada por um estilo pequeno-burguês
de filmar que só é salvo pela grandeza
de realizador de Fellini.
Será em A doce vida (La dolce vita; 1960) que
o diretor começa a transformar seu neo-realismo
(na esquisita e libertina entrevista coletiva que
a personagem da estrela de cinema Sylvia dá,
recebe, entre os petardos à queima-roupa jogados
pelos repórteres e a que muitas vezes ela não
responde, a seguinte pergunta: "O neo-realismo
está morto?"); curiosamente Fellini projetara
inicialmente sua devastação do universo
romano com o título de Moraldo na cidade, o
que encaminharia o filme para uma continuação
de Os boas-vidas (1952), passado entre adolescentes
do interior e que se conclui com a partida do protagonista
para a grande cidade.
Assim como está, A doce vida guarda resquícios
de suas origens: o jornalista e escritor Marcello
Rubini é, como tantos outros, da literatura
ao cinema, passando pela própria vida (quem
dentre nós não é, de alguma maneira,
um homem de interior?) um homem de província
deslumbrado com o grande centro, a Roma do final dos
anos 50.
Quem assistir a quaisquer das realizações
da primeira fase de Fellini e depois der com A doce
vida pode bem observar as metamorfoses narrativas
inseridas. A personagem da prostituta Cabiria, que
conduz a ação por As noites de Cabiria,
não tem a grandiloqüência da criatura
de Marcello, o protagonista por cujos olhos melancólicos
vemos a decadência ocidental numa noite romana
em A doce vida. O barroquismo da imagem felliniana
acentua-se, quer na imponência do tratamento
visual, quer na estridência dos ruídos
que se espalham pelo filme; o que em As noites de
Cabiria era mais um retrato de personagem que permitia
algumas referências sociais, em A doce vida
transforma-se num painel multiforme, tentacular, que
de certa maneira se repetiria, renovando-se, em muitos
outros trabalhos do realizador, o que evidencia a
característica revolucionária criada
a partir dali.
Fellini é mais Fellini do que nunca em A doce
vida. Sua visão moral da sociedade contemporânea
está inteira em cada fotograma. Como bom italiano,
Fellini mistura a religiosidade com sua blasfêmia
correspondente em seu filme; a abertura da obra dá-se
sob o signo da estátua de Cristo pendurada
de um helicóptero que sobrevoa a "cidade
eterna", há uma seqüência de
sessão espírita que parece antecipar
aquilo que Fellini radicalizaria em Julieta dos espíritos
(1965), porém surgem também muitas orgias
e provocações eróticas (premonição
do que ocorreria no mundo a partir dos anos 60 -a
personagem de um homossexual assumido diz nas imagens
finais que em 1965 "o mundo será uma depravação
total") e até um striptease da atriz Nadia
Gray filmado com a engenhosidade de um baile-imagem
que às vezes o cinema de Fellini adquire em
êxtase (Amarcord, 1973, por exemplo, outra obra-prima
musicada por Nino Rota).
Se até o momento do encontro de Marcello com
seu pai -um encontro que passa do eufórico
ao melancólico diante do mal-estar do velho
no quarto com uma garota--, A doce vida parece conter
um clima "pipocante" de um documentário,
depois a emoção adensa-se, fecha-se
a tragédia moderna, o trem descarrila; com
o homicídio de crianças seguido de suicídio
cometido pelo filósofo Steiner (pai das crianças
a quem mata antes de matar-se), amigo mais velho de
Marcello, o absurdo duma sociedade construída
nas bases daquela que está sendo retratada
acelera-se e mergulha a eterna madrugada felliniana
em seu auto-asco. A gratuidade de algumas orgias,
como aquela em que Marcello cobre com penas de travesseiro
uma das mulheres noturnas e rotundas do filme, vai
desajustando os últimos laivos de linearidade
da narrativa; o que remete ao mais gratuito de seus
arroubos visuais, o para sempre maldito A cidade das
mulheres (1980), igualmente interpretado por Marcello
Mastroianni, ali na cidade das fêmeas a anos-luz
da segurança neo-realista.
Diz-se que Michelangelo Antonioni é o cineasta
da incomunicabilidade. Federico Fellini, à
sua maneira, trata da incomunicabilidade. No início
do filme, ao enxergarem o helicóptero com Cristo
dependurado, algumas garotas que tomam sol num terraço,
tentam em vão comunicar-se com os ocupantes
do helicóptero, entre eles Marcello; o som
do motor abafa-lhes a voz. Na cena que fecha a narrativa,
uma garota do outro lado da margem tenta dizer algo
a Marcello, que, após insistências, desiste
de entendê-la, pois o som das vagas corta-lhe
as palavras; o filme encerrar-se-á com a imagem
angelical, loura, um sorridente primeiro plano da
garota.
Em sentido amplo, A doce vida trata da falta de comunicação
entre os seres humanos numa sociedade em que representar
um papel é mais importante que tudo; Fellini
critica a sociedade do espetáculo, isto é,
da aparência, do brilho fútil, assim
como ocorreria, em grau menor, em Ginger e Fred (1985).
O dilema de Marcello, jornalista e escritor, é
o dilema do homem da segunda metade do século
XX: fazer concessões à bobagem e ser
um sucesso, ou resistir e entregar-se à sua
vocação, desafiando o tempo. Profético
em muitos pontos, A doce vida antecipou todas as transformações
sociais e culturais ocorridas dos anos 60 em diante
e, depois do episódio da princesa Diana, a
modernidade da ação desumana dos paparazzi
(palavra originária da personagem de Paparazzo,
o fotógrafo que trabalha com Marcello no filme
de Fellini) se torna irônica e cruel diante
da visão da fita.
Pode-se dizer que um realizador hoje muito prestigiado,
o norte-americano Woody Allen, presta evidente homenagem
ao clássico de Fellini em Celebridades (1998);
o comportamento de vedete do astro autovivido por
Leonardo di Caprio em Allen é extraído,
entre outras coisas, do vedetismo de Anita Ekberg,
que em A doce vida auto-interpreta uma atriz sueca
que chega a Roma para a realização de
um filme e cuja presença no filme de Fellini
vai culminar na nostálgica cena que envolve
Anita e Marcello Mastroianni banhando-se na Fontana
di Trevi. (por Eron Duarte Fagundes)
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