"Falem
mal, mas falem de mim", famosa frase atribuída
a um conhecido ex-senador. Essa pode não ser a filosofia
de vida de Quentin Tarantino, mas é a sua realidade.
Seria injusto, porém, dizer que só se fala
mal dele. Ao contrário, seus filmes são amados
ou odiados com a mesma paixão, mas sem nenhuma unanimidade.
Talvez por conseguir despertar as emoções
dos espectadores é que o polêmico mix de diretor,
produtor, escritor e ator seja uma estrela com brilho próprio
na constelação de Hollywood. Fugindo um pouco
à regra, não costumo me apegar a um diretor
e sim cada obra individualmente. Por ter uma percepção
diferente para cada trabalho dele, considero "Jackie
Brown" o melhor filme de Tarantino. Fãs de "Pulp
fiction", deixem para atirar as pedras mais tarde.
Jackie Brown é uma negra de quarenta e poucos anos
que trabalha como aeromoça numa empresa aérea
mexicana de terceira. Para ganhar uns trocados a mais, Jackie
faz às vezes de pombo-correio para um pequeno traficante
de armas, Ordell Robbie, trazendo dinheiro de uma conta-fantasma
no México. Numa destas vezes, foi surpreendida pela
polícia carregando cinqüenta mil dólares.
Como nas terras do Tio Sam é ilegal trazer mais de
dez mil dólares sem declarar na alfândega,
nossa heroína foi parar na cadeia.
Além de Jackie, Ordell tinha problemas com outro
funcionário seu, Beaumont. Jovem e irresponsável,
Beaumont fora preso dirigindo embriagado, com uma arma ilegal
no carro. Juntando isso aos seus antecedentes, pegaria certamente
dez anos de prisão, dos quais só se safaria
se delatasse seu patrão. Ordell somou dois mais dois
e logo despachou Beaumont para o andar de cima.
Para tirar Jackie da cadeia, Ordell usa os serviços
de um agente de fiança ( uma espécie de despachante
legal), que se encarrega de tomar conta de pessoas em liberdade
condicional. O agente é Max Cherry, cinqüentão
prestes a aposentar-se, que é tomado por uma imediata
e estranha atração por Jackie. Ordell continua
tentando manter os negócios em ordem, e agora conta
com a ajuda de um velho companheiro de prisão, Louis.
O novo agregado ainda ressente-se de um longo período
atrás das grades e a visão da jovem namorada
de Ordell não ajuda muito sua readaptação.
Melanie, jovem e linda, só tem dois prazeres na vida:
assistir TV e drogar-se.
Enquanto continua sendo pressionada por policiais federais
para entregar Ordell, Jackie sofre veladas ameaças
do próprio chefe. Sem alternativa viável,
ela resolve executar um plano mirabolante para enganar todo
mundo e fugir com a grana do traficante. O filme é
um belo exercício de suspense, muito presente em
filmes policiais de todos os tempos. Alguns aspectos, porém,
tornam "Jackie Brown" acima da média. O
mais importante foi a escolha do elenco, que sustenta toda
a trama.
As figuras mais conhecidas, Samuel Lee Jackson, Robert de
Niro, Bridget Fonda, Michael Keaton e Chris Tucker ficaram
com os papéis secundários. Jackson encarna
o traficante Ordell, com rabo-de-cavalo, barbicha e sotaque
de gueto. Niro, com cara de quem apareceu de última
hora, faz o ex-presidiário. Keaton é o agente
federal que prende Jackie. Bridget, linda e talentosa, está
ótima como a surfista drogada enquanto Chris Tucker
cumpre seu eterno papel de grilo falante sumindo logo no
início do filme. Os papéis principais ficam
mesmo com Pam Grier e Robert Foster, ótimos atores
que durante três décadas só fizeram
papéis secundários no cinema e na TV. O mais
notável papel de Foster foi o seu filme de estréia,
"Reflexions in a golden eye", com Elizabeth Taylor
e Richard Burton.
Se
só este ano uma atriz negra ganhou o Oscar, pelo
menos Pam mereceu a indicação para o Globo
de Ouro por sua atuação como Jackie. Também
por este filme, Foster foi indicado ao Oscar de melhor ator
coadjuvante e Jackson ganhou o Urso de Prata de melhor ator
no Festival de Berlim. Outra artifício interessante,
que Tarantino já havia utilizado em "Pulp fiction"
é a condução da narrativa. Normalmente,
uma história é contada como acontece na vida
real, com fatos simultâneos contados em série
( lembram do "Enquanto isso, na "Sala da Justiça"...?).
O diretor consegue usar isso brilhantemente, num momento
de suspense quando Ordell vai pressionar Jackie, e logo
depois subverte tudo, ao mostrar uma seqüência
de fatos em um shopping center. Nesse ponto do filme, o
mesmo intervalo de tempo é mostrado três vezes,
sempre de um ponto de vista diferente, resultando num conjunto
muito original.
Um terceiro aspecto curioso deste filme é a maneira
como a violência é apresentada. Diferente do
jeito explícito e até banal de "Pulp
fiction", em "Jackie Brown" tudo é
mais escondido, submerso. A seqüência da morte
do personagem de Chris Tucker é o melhor exemplo
isso. Tudo é mostrado à distância, apenas
confirmando o que o espectador já antecipa. Todas
as ações e reações são
inesperadas, fugindo ao lugar comum dos filmes policiais
tipo "bateu-levou".
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