Do
Violento, bombástico, arrebatador, sonoro, dançante e assustador.
O alucinado Alex (Malcolm McDowell) tem sua própria forma
de se divertir. Sempre às custas da tragédia dos outros.
A transformação de Alex de um punk sem moral até um cidadão
exemplar doutrinado e sua volta ao estado rebelde, compõe
a chocante visão do futuro que Stanley Kubrick elaborou
a partir do livro de Anthony Burgess. As imagens inesquecíveis,
a música arrebatadora, e a linguagem fascinante utilizada
por Alex e sua gangue, foram moldadas por Kubrick neste
conto sobre os caminhos da moralidade. Extremamente controvertido
na época de seu lançamento, Laranja Mecânica ganhou os prêmios
de Melhor Filme e Melhor Direção da Associação dos Críticos
de Cinema de Nova York, e recebeu quatro indicações ao Oscar®,
incluindo Melhor Filme (1971). O poder de sua arte é tamanha
que ainda nos atrai, choca e nos mantém preso em seu domínio.
|
KUBRICK
EM SETEMBRO DE 1978. Laranja mecânica (A clockwork
orange; 1971), o mais violento dos filmes assinados por
Stanley Kubrick, tido por um dos poucos gênios da sétima
arte, chegou aos cinemas de Porto Alegre em setembro de
1978 e este cinemaníaco, então com vinte e três anos, o
degustou umas cinco vezes no velho e majestático cinema
Cacique, um dos muitos cinemas de rua varridos da geografia
da cidade pelas exigências arquitetônicas contemporâneas.
Lembro que em todas as sessões em que compareci pessoas
se retiravam da sala desde os primeiros minutos; o fluxo
de saída de indivíduos era grande. Pensava comigo, irônico
em meus vinte e três anos: estômagos fracos para agüentar
a violência radical de Kubrick.
Outra curiosidade
do lançamento tardio do filme de Kubrick, retido pela censura
militar nos anos de chumbo, foi que aquele afrouxamento
censório, ainda lento e gradual como tudo naquela abertura
política, impôs uma condição para liberar a película: nas
cenas de nudez frontal feminino, bolas pretas encobriam
as vaginas, dançando ridiculamente na tela.
Mas o filme de
Kubrick era tão bom que superava estes contratempos: a insatisfação
do público e o circo da censura. A laranja oferecida pelo
cineasta, a partir duma obra literária de Anthony Burges,
é uma aguda reflexão sobre a violência interna e externa
que sofre o indivíduo contemporâneo; o intenso simbolismo
da linguagem de Kubrick e sua extraordinária armação visual-sonora
permitem a Laranja mecânica sobreviver aos anos.
Talvez a banalização da violência no mundo de hoje impeça
que o impacto das cenas aja sobre o espectador atual da
mesma maneira que agia sobre aquela assustada platéia que
se retirava dos cinemas no final dos anos 70; mas certamente
seu poder reflexivo deve estar intacto, mais de trinta anos
depois de sua realização.
UM
CINEMA DE ANTECIPAÇÃO AINDA ATUAL - dvd
(Há alguns
meses escrevi um texto encomendado pela dvdmagazine sobre
o filme de Kubrick cujo exame agora detalhado se baseia
numa visão de cópia em dvd; o texto anterior
era extraído da memória e de algumas precárias
anotações feitas há vinte e cinco anos.)
Durante
uns bons anos a moral dos governos militares brasileiros
impediu os espectadores do país de conhecer Laranja
mecânica (1971), de Stanley Kubrick. Diziam
que nossa censura só liberava o filme de Kubrick
com cortes, e Kubrick era um artista intransigente: com
cortes, não autorizaria a exibição
em parte alguma do mundo. Até que, em setembro de
1978, a lenta e gradual abertura política permitiu
a entrada no país de Laranja mecânica,
sem cortes mas com um acréscimo grotesco: as poucas
e breves imagens de vaginas teriam de ser cobertas por bolas
pretas, que nas rápidas e trêfegas cenas de
sexo tinham de executar uma estranha ginástica de
dança diante dos olhos aparvalhados do espectador.
Nos anos entre o lançamento internacional da fita
e sua chegada ao Brasil, muito cinemaníaco nacional
excursionou a Montevidéu para tapar este furo de
sua cultura cinematográfica. Outro dado curioso daquelas
concorridas sessões do fim dos anos 70 em Porto Alegre
era que, ao longo de toda a projeção, um fluxo
de indivíduos se movimentava para as saídas
dos cinemas, sintoma de que a violência ininterrupta
das seqüências incomodava as platéias
da época.
Mais de vinte anos passados, revejo esta obra-prima de Kubrick
em sua versão em dvd. A intensa beleza plástica
e a força simbólica da narrativa não
perderam seu vigor com os anos ou diante da visão
em tela pequena. Kubrick é um cineasta original,
e penetrar numa sala para ver um de seus filmes era, como
acontecia com os lançamentos de um Federico Fellini
ou um Ingmar Bergman, preparar-se para degustar um universo
diferente, uma forma nada comum de filmar: criatividade
em grau máximo. Desde a imagem de abertura, Kubrick
fere os olhos do assistente apelando para o inusitado e
o pessoal: a maquiagem repuxada e barrocamente exagerada
de Alex, na sarcástica interpretação
de Malcom McDowell (o olhar mau do ator é um dos
eventos do filme), aparece em primeiro plano como para dar
o tom de perversidade da narrativa. Os cenários são
elaboradíssimos: o antro em que se reúne a
gangue de Alex (a leiteria) antes das noitadas de maldades
é uma pintura futurista. Os comentários musicais
são soberbos, impõem-se por dentro da imagem.
Baseado num romance de Anthony Burgess, Kubrick se vale
dum dialeto peculiar e cruel nos diálogos, gíria
inventada por Burgess a partir de suas experiências
londrinas de ruas. Talvez, em face da banalização
da violência no mundo e no cinema, o coeficiente de
agressividade das cenas kubrickianas não chegue atualmente
a prejudicar o estômago de ninguém; mas é
certo que a estética de Kubrick permanece intocada
em sua grandeza.
Basicamente, em Laranja mecânica,
Kubrick faz a radiografia de duas violências, do indivíduo
e a da sociedade (que se organiza em Estado para exercê-la).
Alex, movido por drogas e pela publicidade visual, é
violento e cria sua gangue; Kubrick antecipa um pouco o
universo de gangues do final do século XX. Traído
por seus comparsas, preso, é submetido ao tratamento
Ludovico, um fictício método em que o submetem
a um lavagem cerebral para lhe retirar os instintos básicos
de violência e sexualidade; o indivíduo perverso
vai virar um cordeirinho. Kubrick exubera em gravuras, pinturas
e esculturas para dar seu recado; uma das vítimas
de Alex, a mulher dos gatos, é golpeada mortalmente
por ele com uma peça fálica de escultura.
O jogo de complexidade é exercido na caracterização
de Alex: ele não é um marginal vulgar; ouve
Beethoven depois de suas noites de crimes e estuprou a mulher
do escritor subversivo cantando “Singing in the rain”,
clássica canção cinematográfica
de Hollywood. Kubrick é crítico em relação
às próprias vítimas: o velho outrora
agredido por Alex vinga-se na mesma moeda, convocando sua
tribo de anciãos para dar-lhe um pau quando dá
com ele na rua, assim como o escritor que critica por motivos
políticos o método Ludovico não deixa
de usar o método criticado para judiar de Alex ao
descobrir que ele é seu algoz do passado. Kubrick
desbanca a hipocrisia humana, amplamente.
A seqüência final, em que toda a trajetória
de Alex é usada e invertida pelo governo para fins
políticos, o protagonista quebrado (depois duma tentativa
de suicídio ao ser torturado com a Nona de Beethoven
na casa do escritor que antes ele espancara) e sorridente
(afinal, o homem de Estado lhe estava dando comida na boca)
numa cama de hospital, é o produto elevado do sarcasmo
estético de Kubrick. |