O deslumbramento cromático de Lola (Lola;
1981), do alemão Rainer Werner Fassbinder,
vai atingir fortemente o espectador desde as primeiras
imagens, quando, após uma cena fotográfica
em preto-e-branco sublinhada por uma canção-off,
surge uma exótica e colorida apresentação
de créditos em que se precisa aguçar
a vista e a atenção para entender o
que vai escrito na tela. O cromatismo de Lola está na
própria raiz da linguagem de Fassbinder neste
filme: a tensão de cores e iluminação
chega a ser mágica quando, ali mesmo pelo
início da narrativa, Lola está cantando
no cabaré; seu figurino extravagantemente
vermelho combina com as demais cores e luzes deste
quadro que nos arrebata.
O
cinema alemão tem perdido seu espaço
nas discussões cinematográficas de
hoje e os realizadores revelados por aqui estão
longe daqueles soberbos artistas que dirigiriam filmes
a partir das décadas de 60 e 70. Fassbinder é um
dos grandes cineastas desta geração.
Seu Lola está dedicado a Alexander Kluge,
talvez o maior cérebro produzido pela sétima
arte na Alemanha.
Na
verdade a história contada em Lola se parece
com aquela que o francês Robert Bresson transformou
em imagens em As damas do bosque de Bolonha (1944).
No filme de Fassbinder, um administrador público
recém-chegado e com muita vontade de pôr
ordem na casa passa a flertar com uma garota e vem
a apaixonar-se por ela; entra em pânico quando
descobre que ela é Lola, uma prostituta que
dança e canta e se vende num bordel. Se Bresson
desvia a reflexão de sua narrativa para a
salvação espiritual, Fassbinder dá a
seu filme uma conclusão cínica e perversa.
A lama do espírito de Fassbinder é muito
maior.
Fassbinder
não se relaciona de maneira alguma
com a arte de Bresson. Os pontos de contato entre
as tramas analisadas no parágrafo anterior
devem ser tidos por coincidência. Um certo
barroquismo, o refinamento de cenários, o
próprio título do filme, a identidade
da protagonista, tudo conduz a Lola de Fassbinder
a situar sua obra-prima nas ilustres sombras de Lola
Montès (1955), de Max Ophüls, um dos
mais agudos retratos de meretriz que o cinema trouxe à luz.
Fassbinder refaz os melodramas de Ophüls, repassados
por influências mais fáceis de assimilar
herdadas do alemão radicado em Hollywood Douglas
Sirk. Lola é este conjunto desvairado de estéticas
que se superpõem, se entrecruzam e se dilaceram
nas mãos exasperadas de Fassbinder. Exasperação
que ele passa ao espectador.
A
alemã Bárbara Sukowa (que seria a
Rosa Luxemburgo de Margarethe von Trotta) dá uma
potência admirável à protagonista
de Fassbinder. Armin Mueller-Stahl, que viveria para
Alexander KLuge o cineasta cego num episódio
perturbador de O ataque do presente contra
o restante do tempo (1985), compõe um complexo servidor
público, cuja resistência à corrupção
se converte num projeto quixotesco. E também
Mario Adorf como o chefe de polícia despudorado
(o Mario Adorf de O tambor, 1979, de Volker Schloendordd) é uma
interpretação exemplar, vigorosa. Vigor é o
que há de sobra em Lola.
O
filme de Fassbinder é uma visão extremamente
lúcida e bem-sucedida dos caminhos da sociedade
contemporânea. Quando a película passou
por aqui em 1986, as anotações que
fiz foram evasivas, reticentes, revelando incompreensão
para com as intenções cinematográficas
do realizador. Revendo Lola em dvd, o rumo de meu
pensamento mudou; compreendi Fassbinder e deliciei-me
com sua salada de cores.
Fassbinder
sempre soube expor em imagens a força íntima
da mulher alemã. Effi Briest (1974) é seu
trabalho mais radical e belo, Hanna Schygulla desfila
ali uma personagem impagável contracenando
com espelhos. Lola é do mesmo
naipe. (Eron Fagundes)
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