O franco-polonês Jean Epstein (francês
por opção, polonês de nascimento) é um
destes nomes míticos do cinema a que o espectador
brasileiro desta beira do século XXI raramente
tem acesso, mesmo em salas especiais. Já num
artigo de 1954, o crítico brasileiro de cinema
Francisco Luiz de Almeida Salles, que o ensaísta
e historiador Paulo Emilio Sales Gomes considerava
como nosso “único escritor (dos meios
cinematográficos brasileiros) na plena acepção
da palavra”, lamentava a incompreensão
existente em relação à obra
de Epstein, teórico do cinema e cineasta.
Epstein
deve sua fama nos estudos de cinema a um único
filme, A queda da casa Usher (1928), extraído
de um dos mais célebres contos do norte-americano
Edgar Allan Poe (o conto é de 1839 e teve
entre nós uma primorosa tradução
de Oscar Mendes publicada pela José Aguiar
Editora em 1975). Em Porto Alegre, o Projeto
Raros (filmes nunca vistos ou raramente vistos no país)
da Sala Paulo Fontoura Gastal exibiu esta preciosidade
o ano passado. A quem pode interessar um velho filme
francês dos anos 20, ainda quando se trate
de algo historicamente conceituado, se a oferta das
facilidades visuais induz o espectador de sempre
a acreditar que o cinema é, como a informática,
só tecnologia, em que a posterior enterra
a anterior e estamos conversados? Mesmo assim, na
sessão a que aludo, havia um expressivo público:
uma fauna meio esquisita, mas o filme de Epstein
(como o conto de Poe) igualmente contém sua
dose de esquisitice.
A
cópia exibida era uma versão em dvd
(projetada num telão) em que os letreiros
em francês eram traduzidos para o inglês
e as imagens de um cinema mudo contavam com um acompanhamento
musical incrustado na montagem. A essência
do cinema silencioso foi assim adulterada para não
chocar tanto o conformismo, a preguiça e o
hábito do observador moderno. Mas Epstein é um
mestre da imagem: recria os cenários mórbidos
da literatura de Poe com uma geometria cinematográfica
em que a beleza plástica da angulação,
alguns sutis movimentos de câmara que parecem
avançar para dentro do cenário (os
cacarecos de interiores ou as folhagens do lado de
fora da casa) e a disposição de objetos
e atores na encenação promovem uma
orquestra visual ainda hoje de muita força.
Epstein,
em seu tempo, era um cineasta de vanguarda. A evolução do cinema torna esta vanguarda
quase invisível para o assistente de hoje
e há até filmagens mais rançosamente
clássicas como a do incêndio do final
do filme; mas a verdade é que A queda
da casa de Usher tem bala suficiente para impor-se ao estudioso
de cinema de nossos dias como obra definitiva. O
filme (curtíssimo: sessenta e seis minutos)
exemplifica com perfeição a teoria
de cinema de Epstein: “Fazer da câmera
não apenas um olho artificial, mas também
um olho associado a uma imaginação-robô,
e como se fosse dotado de subjetividade automática.” (apud “Cinema
e verdade”, de Francisco Luiz de Almeida Salles).
Em A queda da casa de Usher Epstein mostra como a
inteligência da máquina cinematográfica
pode manifestar-se ao criar (ele, o autor) um tipo
pessoal de câmara subjetiva em que a personagem
se cola à e é levada pela máquina.
A primeira pessoa que narra o conto de Poe é,
talvez pela primeira vez no cinema, substituída
por uma delirante câmara subjetiva que vai
devorando os cenários, assim como o olhar
em palavras daquela criatura-testemunha de Poe.
Para
o espectador que, deixando de lado a fácil
preguiça de pensar sobre cinema que se abate
sobre as cabeças de hoje, se extasia diante
deste intrigante caso de incesto não consumado
contado por Epstein, é inevitável reflexionar
que a inteligência da máquina sonhada
pelo cineasta de A queda da casa de Usher se brutalizou
em realizações comerciais contemporâneas,
como X-men 2 (2003), de Bryan Singer,
ou Matrix
I e II (1999-2003), dos irmãos Larry
e Andy Wachowski. Se não formos mais capazes
de admirar as grandes obras cinematográficas
do passado, aqui e ali não compreendendo a
sisudez de algumas colocações estéticas
porque hoje tudo é riso (e pode-se rir, indevidamente,
do jeito expressionista do ator num filme de 1928),
o cinema estará nas mãos dos brutalizadores
que, emburrecendo a máquina, decretarão
o fim de tudo. “Não obstante isso, eu
me propusera ficar algumas semanas naquela mansão
de melancolia”, escreve Poe em seu conto, e
eu assim adapto metaforicamente esta frase: Apesar
de tudo (Matrix e seu séqüito),
permanecerei fiel a uma casa de cinema que eu amo,
a esta casa
chamarei de casa de Usher e ali encarcerarei os filmes
que interessam rever interminavelmente, de O
encouraçado
Potemkin (1925), de S.M. Eiseinstein, a O
ataque do presente contra o restante do tempo (1985),
de Alexander Kluge. (Eron Fagundes)
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Um filme muito importante para a história
do cinema numa edição boa em termos
de imagem e áudio. Claro que há imperfeições,
principalmente no desgaste da imagem, mas a sua transferência
para o DVD foi muito bem realizada, ou seja, me pareceu
que se há imperfeições estas
são do desgaste da película. Os extras
são poucos, se resumem a textos, mas razoável
fonte de pesquisa. Menus animados, bem de acordo
com o filme, embalagem sem grandes problemas e informativa.
Uma bela iniciativa de uma nova distribuidora, com
qualidade bastante aceitável. Afinal, não é sempre
que se tem acesso a estas obras-primas do cinema
mundial.
Este DVD faz parte da Coleção Tour de France Vol. 1 - Vermelho.
Veja aqui todos os filmes da coleção.
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