REVISANDO
BERTOLUCCI - Antes de O último imperador (1987),
que é uma obra-prima, eu não conseguia
engolir muito bem o cinema do italiano Bernardo Bertolucci.
Grande parte deste estranho asco vem da má
experiência que foi para mim conhecer no final
dos anos 70 seu filme mais badalado: O último
tango em Paris (1972) chegava ao Brasil quando a ditadura
militar e seus censores afrouxavam a rédea.
Eu me estava iniciando no cinema (tardiamente, era
então um jovem de vinte e quatro anos apressado
naquela massa de curiosos no cinema Cacique) e a peça
de escândalo que era esta realização
de Bertolucci não topou em mim a sensibilidade
para usufruí-la. Hoje sei que se trata mais
de defeito meu que do filme, o qual agora, revisto
na televisão ou em dvd, com todas as limitações
da pequena tela, se mostra o mais agudo e vigoroso
trabalho do cineasta.
Conhecendo
alguns filmes de Bertolucci anteriores a O último tango em Paris, nota-se o aspecto
datado de sua concepção: Antes da revolução
(1964), A estratégia da aranha (1970) e O conformista
(1970), para ficar com três exemplos vistos
há alguns anos na cidade, são obras
curiosas mas que não sobrevivem em sua integralidade.
O último tango em Paris, conquanto hoje pareça
até ingênuo em sua rebeldia contra a
tradicional família burguesa (penso na cena
em que Marlon Brando sodomiza Maria Schneider, depois
de passar-lhe a manteiga no ânus faz com que
ela recite algumas diatribes contra a família
-compare-se com a contundência e a maldade duma
realização dos anos 90, Os idiotas,
1997, do dinamarquês Lars Von Trier, ou para
restringir-se aos próprios anos 70, Salò
ou os 120 dias de Sodoma, 1975, de Píer Paolo
Pasolini, exemplo máximo de rebeldia antiburguesa),
resiste mesmo assim ao tempo graças ao seu
vigor poético e existencial; desde a imagem
inicial de Brando desesperado debaixo dum viaduto
sobre o qual passa um trem, até o plano de
fechamento em que a Schneider aparece de perfil, depois
de assassinar a Brando, resmungando que não
o conhecia, que o encontrou na rua e ele queria estuprá-la,
o filme de Bertolucci perturba e inquieta o espectador,
provocando-o em seus preconceitos.
Cheio
de obscuros movimentos de câmara e enquadramentos
muito pessoais, O último tango em Paris apresenta
o mais feroz choro cinematográfico, um primeiro
plano de Brando junto à parede do apartamento
vazio. E uma das mais rápidas e penetrantes
seqüências de sexo da história do
cinema ocorre na semi-escurdião do apartamento,
quando Brando possui sua parceira contra a parede
e logo no chão, sem que ambos se dispam inteiramente.
Sexo sem nus, diversamente do que ocorre em O império
dos sentidos (1976), do japonês Nagisa Oshima,
outra peça iconográfica do cinema erótico
da época.
Evitando
qualquer ligação mais íntima
fora da relação carnal (ele não
quer saber-lhe o nome nem nada de sua vida fora daquelas
quatro misteriosas paredes), a personagem de Brando
busca no momento final um gesto de aproximação,
perguntando-lhe finalmente o nome que no início
da narrativa lhe repugnava conhecer; ironicamente,
é bem no instante em que ela balbucia "Jeanne",
que a garota vai apertar o gatilho do revólver,
matando seu parceiro. Ao longo da fita, os dois amantes
trocam muitas confidências, há um longuíssimo
primeiro plano de Brando deitado de lado no chão
da peça falando interminavelmente; o suicídio
de sua mulher, que tinha uma amante, e a vida de noiva
da garota (ela é noiva dum tresloucado cineasta
vivido por Jean Pierre Léaud, ator-fetiche
de François Truffaut) se misturam com os encontros
e os desencontros do quarentão e da jovem
no apartamento sem nada que eles preenchem com a
voracidade
de suas personalidades.
Maria
Schneider ainda apareceria noutro dos grandes filmes
dos anos 70: O passageiro, profissão:
repórter (1974), de Michelangelo Antonioni.
Marlon Brando, assim como Maximo Girotti (que vive
o amante da mulher de Brando), é um nome mítico
do cinema. Catherine Breillat, que aparece como assistente
de direção, assinou recentemente uma
peça de escândalo, Romance (1999), que
parece marcada por esta aura inatingível do
clássico de Bertolucci. (por Eron Duarte Fagundes)
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