Pela
primeira vez em vídeo e DVD no Brasil, Umberto
D. é um clássico inesquecível
sobre o drama da velhice e marca o apogeu da parceria
entre o mestre Vittorio De Sica e o roteirista Cesare
Zavattini, a dupla responsável por obras-primas
do neo-realismo italiano, como Ladrões de
Bicicleta, Milagre em Milão e Vítimas
da Tormenta. Itália. Início dos anos
50. Enquanto a economia do país renasce, os
idosos sofrem com as miseráveis pensões
dadas pelo governo. Em Roma, Umberto Domenico Ferrari,
um funcionário público aposentado, é despejado
por não conseguir pagar o aluguel de seu quarto.
Na companhia de seu único amigo, o cachorrinho
Flik, Umberto vaga pelas ruas, buscando apenas um
objetivo: viver com dignidade. Indicado ao Oscar
de Melhor Roteiro, Umberto D. é um daqueles
filmes que ficam para sempre em nossa memória. |
Num
destes muitos filmes do norte-americano Woody Allen
ambientados na alta burguesia intelectual nova-iorquina
(arriscando, creio que se tratava de Manhattan,
1980), as personagens saíam dum cinema discutindo Ladrões
de bicicleta (1948). Lembro que alguém
insistia muito na questão social deste filme
italiano, insistia e repetia-se. Então a criatura
de Allen, certamente porta-voz do próprio
cineasta, vinha com outra interpretação:
que se esquecesse a questão social, que se
atentasse para a beleza da narrativa independentemente
da urgência política de que ela se revestia.
Vittorio
De Sica, o realizador de Ladrões de
bicicleta, foi um dos nomes básicos
do neo-realismo peninsular, escola de cinema que
imperou nos anos 40 e 50. Sua associação
com o roteirista Cesare Zavattini é um destes
casamentos cinematográficos lendários
ao qual devemos maravilhas; aqueles que julgam que
um roteiro é tudo em cinema (quando na verdade é somente
seu esqueleto) atribuem a Zavattini a autoria das
películas de De Sica desta fase.
A
possibilidade de conhecer, ainda que no formato de
dvd, Umberto D. (1951), um dos mais
brilhantes trabalhos legados pela dupla Zavattini—De
Sica, pode ajudar a esclarecer alguns pontos do que
Allen queria insinuar (a estética seria mais
importante que a política?) e a entender se
Zavattini e De Sica poderiam existir no cinema um
sem o outro. Como em todos os filmes que De Sica
rodou nesta época, um país miserável,
arruinado pelo pós-guerra, está em
cena; já nas primeiras imagens o espectador
dá com uma passeata de aposentados (todos
muito velhos, pois então não se aposentavam
pessoas mais jovens) reivindicando aumento de seus
paupérrimos salários e logo sendo escorraçados
pela polícia.
No
entanto, a busca de uma espontaneidade vital perseguida
pela câmara “social” de De Sica
nunca o impedirá de adotar certos rigores
de composição que conferem extraordinária
plasticidade a suas imagens. Poucos diretores de
cinema lograrão inserir com tanta precisão
o gesto humano na linguagem cinematográfica;
a beleza de certas angulações, a maneira
de dispor pessoas e objetos dentro do plano, a certeza
de cada movimento do ator, tudo obedece a uma função
que escapa a um certo amadorismo realista e documentário;
se se quiser ter à mão o resultado
plástico deste procedimento, o vídeo
ou dvd é a fruição exata –dê-se
um congelamento em qualquer fotograma, e ver-se-á como
tudo, sob a aparente simplicidade, é fruto
de uma estética muito estudada visando àqueles
efeitos plásticos que a personagem de Allen
já apontava na altercação com
seu cético interlocutor.
Igualmente
se pode perguntar: Zavattini escreveu a cena do reencontro
de Umberto com seu cãozinho Flike, que tinha
fugido de casa; certamente um texto deste trecho
teve lá seus arroubos sentimentais. Só um
diretor de grande habilidade para a encenação
lograria evitar a pieguice ao filmar isto. De Sica é tão
bom aqui quanto o francês Jean Renoir nas seqüências
mais ironicamente melodramáticas de Toni (1934),
a matriz de todo o realismo cinematográfico.
A propósito, Umberto D. é construído
um pouco como este velho filme de Renoir: nada acontece
senão nas almas das personagens, almas que
são feitas de gestos minúsculos.
Umberto,
o velhinho aposentado, e Maria, a jovem grávida
cujo coração e barriga hesitam entre
dois rapazes, estão entre as mais profundamente
humanas personagens da história do cinema.
O cãozinho Flike, que evita no fim o próprio
suicídio de Umberto (um evitar que brota espontaneamente
das coincidências), é um contraponto,
e sua função no filme assemelha-se
um pouco àquela da bicicleta desaparecida
em Ladrões de bicicletas.
Enfeixando
este rosário crítico, sabe-se que Umberto
D. foi um eterno fracasso de público.
Compreensível: o cinema, um espetáculo
habitualmente freqüentado por jovens, tem dificuldades
em assimilar a velhice como objeto interessante.
A juventude não gosta de ver-se no espelho
da velhice. Em Laranja mecânica (1971),
de Stanley Kubrick, o jovem Alex e sua gangue espancam
um velho debaixo dum viaduto, e quando, na segunda
metade do filme, um grupo de velhos ataca Alex, a
voz-over deste exclama: “Era a velhice se vingando
da juventude.” Em Mr. Arkadin (1955)
o ser vivido por Orson Welles, também diretor
do filme, vê um velho atirado na rua e rosna
com asco: “É a velhice!” Compreende-se,
pois, que Umberto D. seja vítima do preconceito
etário-cinematográfico.
Mas,
para além do debruçar-se sobre a solidão
e a miséria de um idoso, a obra-prima de De
Sica antecipa aquele rigor formal com que outro italiano,
Michelangelo Antonioni, incluiria os gestos das pessoas
na estética fílmica. Lado a lado com Era
uma vez em Tóquio (1953), do japonês
Yasujiro Ozu, Umberto D. é uma
contemplação cinematográfica
sobre a velhice como nenhuma outra. (Eron
Fagundes)
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A
imagem deste DVD foi remasterizada, permitindo uma ótima
qualidade, em que pese a idade do filme, mantendo
o seu formato original. O áudio, em mono (para
quem tem home-theater, o áudio está apresentado
no canal central), não compromete. Não
há a desejável dublagem em português.
Os
menus, estáticos mas interessantes. Os extras,
quase nenhum. Apenas textos (bons, por sinal).
Uma
das obras-primas do grande cineasta De Sica, importante
lançamento em DVD. Obrigatório para
cinéfilos e colecionadores, mesmo quase sem
extras.
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