Isso de ir ao cinema sozinho.
Durante a semana, nenhum problema. Chego de mão no
bolso, tomo um expresso antes, dou a chamada passada d’olhos...
peraí, um apóstrofo, estava ansioso para usar
um na página 3. Vou até repetir: dou uma passada
d’olhos no último Ed MacBain que comprei ali
na livraria e, enfim, entro na sessão. Ao fim do filme,
saio tranqüilo, vou para casa pensando na história
talvez encontre o Eduardo e o meu irmão Régis
para um chope, e talicoisa.
O drama é o sábado à noite. Uma vez
tentei ir ao cinema sozinho num sábado à noite.
Cheguei lá e, puxa, todos aqueles casais. Eles ficaram
me olhando:
- Olha aquele cara sozinho no cinema num sábado à noite.
Tenho certeza que apontavam para mim. Que cochichavam.
Alguns riam. Eu, um cara sozinho, absolutamente sozinho,
uma aberração.
O que havia de errado comigo, que não estava de namorada?
Será que ela havia me dado o bolo, coitado de mim?
Será que nenhuma mulher dessa cidade fervente de mulheres
solteiras, descasadas, viúvas, sequiosas de companhia,
será que nenhuma delas queria ir comigo ao cinema
justamente num sábado à noite???
Era o que comentavam. Sei disso! Comprei meu ingresso
e me aprumei. Queria salvar minha dignidade. Tentei aparafusar
no rosto uma expressão satisfeita, de quem estava
sozinho por preferência, entendem? Uma opção.
Ensaiei até um meio sorriso. Se tivesse um celular
faria de conta que estava conversando com uma moça.
Falaria no tom que habitualmente as pessoas usam ao celular.
Aos berros:
- Alô? Ah, oi, Clá. Estou entrando no cinema.
Por que não te convidei? Bem, Clá, tu sabes
que gosto de ir ao cinema sozinho. A solidão também é importante,
Clá. Lembra quando tu ganhaste o Garota Verão
e as pessoas não te deixavam em paz? Pois é,
Clá. A solidão às vezes é um
bálsamo. Depois? Está certo, depois do filme
nos encontramos, querida. O quê? Hein? Ah, pode ser
aquela calcinha preta de rendinha que tu usaste a última
vez...
Mas não tinha celular. O único recurso era
a linguagem não-verbal. Como se parece uma pessoa
completamente satisfeita por estar sozinha no cinema num
sábado à noite? Já sei: sobrancelha
esquerda levantada, olhar sonhador de quem está esperando
uma noite inefável, talvez um assobiozinho. Sim,
um assobio pega bem.
Foi assim que entrei na sala. O filme começou. O mundo
ficou sem importância por duas horas. Esqueci de tudo,
até que estava sozinho no cinema num sábado à noite.
Mas, quando a ação acabou, as luzes se acenderam,
como sempre se acendem. Os casais todos se levantaram, vestiram
seus casacos, apanharam suas bolsas. Antes que reparassem
em mim, saí pisando firme, sem olhar para os lados.
Não queria encontrar ninguém conhecido. Deus
me livre pegar a fama de quem vai sozinho ao cinema num sábado à noite.
David Coimbra
Jornalista da Zero Hora, David Coimbra, autor dos livros “A
Mulher do Centroavante”, “A Cantada Infalível”, “A
Viagem” e “Crônica da Selvageria Ocidental”.
(coluna publicada dia 9/05/2003 no jornal Zero Hora e
autorizada pelo autor)
|