O suicídio da escritora inglesa Virginia Woolf abre
e fecha o filme As horas (The hours; 2002), dirigido
pelo inglês Stephen Daldry a partir dum romance do
norte-americano Michael Cunningham publicado em 1998. Vemos
Virginia abandonar sua casa, depois de deixar uma carta
de despedida para seu marido, rumar para o lago próximo,
caminhar pelas águas, afogar-se; as cenas do afogamento
de Virginia são alternadas com as da chegada a casa
dum atarefado e espantado Leonard, o esposo de Virginia.
O centro do romance de Cunningham e do filme de Daldry é
o estado mental de Virginia, excitadíssimo, enquanto,
em 1923, redige seu livro Mrs. Dalloway (1925), uma
das obras mais estimadas da grande ficcionista britânica
e que entre nós teve uma tradução caprichada
do poeta gaúcho Mario Quintana; esta obra-prima de
Virginia já teve uma bonita versão para o
cinema em 1997 dirigida pela holandesa Marleen Gorris.
Nos anos 20 Virginia escrevia seu livro impagável
tomada por um fogo literário. Nos anos 50 uma dona
de casa está às voltas com a leitura deste
livro impagável e incendiário. À porta
do século XXI uma editora de livros, que teve um
caso com o filho escritor da personagem da história
da segunda frase deste parágrafo, prepara uma festa
para este seu ex-amante, hoje neurótico e aidético
e em vias dum suicídio virginiano; ela repete, em
discurso direto, incorporando a personagem de Clarissa Dalloway
(ela se chama Clarissa Vaughn), a frase inicial do romance
de Virginia, escrita em discurso indireto. O roteirista
David Hare fez misérias para manter o alto nível
de sutileza e profundidade do romance de Cunningham; apesar
da complexidade do entrelaçamento das três
histórias, a transparência do filme nunca se
perde na cabeça do espectador, revelando a segurança
diretiva de Daldry.
A mão segura e a sensibilidade são os pontos
altos do cineasta, que apresenta aqui uma evidente evolução
desde Billy Eliot (2000), seu trabalho anteriormente
exibido por aqui. Suas atrizes exuberam. Até Nicole
Kidman, nem tão boa atriz assim, está surpreendentemente
bem, com seu jeito de poetisa louca e visionária,
no papel de Virginia. Julianne Moore, com seu característica
especial e medida, compõe a leitora voraz e íntima
de Virginia. Meryl Streep, na pele duma editora contemporânea,
é a mestra sensível de sempre: curioso é
observar que o romance de Cunningham cita Meryl Streep pela
boca ou pensamento da personagem que a própria Meryl
viria a viver na tela, Clarissa Vaughn: "Era Meryl
Streep, é claro que era."
As horas é um belo filme e, musicado por
Philip Glass com uma partitura dolente e introspectiva e
quase deslizante pelos cenários cheios de intimidade,
é uma realização em que sons e imagens
se colam na linguagem de cinema.
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