(de Carlos Benedetti)
A sacada do segundo andar
do edifício da frente era um verdadeiro suplício para Adoniran, um rapaz tímido
e franzino, de hábitos caseiros, que mal saía de casa, e que morava no terceiro
andar de um velho prédio.
Em todas as manhãs ensolaradas,
a linda Suzete, moça festeira, de uma lindura escultural e bem torneada, a quem
todos os rapazes literalmente babavam quando a viam na rua, pousava-se no calor
do sol para queimar sua pele ligeiramente tostada. Fazia isso para manter o
leve e acalentado bronzeado que torturava todos os homens que para ela dirigiam
os olhos.
Adoniran, em sua espantosa
e melancólica timidez, sonhava todas as noite que o sol raiasse voluptuoso no
dia seguinte. Tudo para ver Suzete e seu corpo escultural na sacada do segundo
andar.
Pensava que Suzete jamais
poderia ser sua, afinal, porque uma mulher com aquelas qualidades iria se interessar
por ele, um homem sem quaisquer atributos, tanto de beleza como de inteligência.
Limitava-se, então, a observá-la com uma pequena luneta que ganhara quando da
morte de seu avô Jeremias, um velho apaixonado por observar as estrelas.
Certa ocasião, Adoniran postou
à sacada da sala de seu apartamento, como fazia em todas as manhãs ensolaradas
para observar Suzete. Eis que, inesperadamente, vislumbrou das lentes riscadas
de sua luneta a linda Suzete postada ao sol, acompanhada de um indivíduo franzino,
com cabelos ralos e de semblante triste e feio, verdadeiramente feio.
Martirizado, pois nunca tinha
visto Suzete acompanhada em seu apartamento, quanto mais à sacada de manhã cedo,
ao mesmo tempo lhe surgia um sentimento de traição. Sim, Suzete houvera lhe
traído. Acreditava nisso. Trouxera ela, ao único momento de intimidade entre
eles, um terceiro desconhecido e, pior, ainda mais feio e menos atrativo que
ele, Adoniran.
A cena começou a se repetir
dia após dia. Aquele rapaz estava lá, todos os dias, junto à sacada com Suzete,
atormentando a mente de Adoniran, que se sentia cada vez mais atolado no mundo
de voyerismo que criara em torno de Suzete e si mesmo, isolando-se do mundo
real, isolando-se de eventuais amores com outras mulheres menos interessantes
que Suzete.
Trocou, então, os sonhos noturnos
por rodadas de uísque, vodca, cerveja e vinho, acompanhado somente de desconhecidos.
Virou o um dos maiores boêmio da cidade. Chegava sempre da noite ao raiar do
dia, cedo da manhã, e, quando conseguia, aguardava o amanhecer para observar
Suzete na sacada, sempre acompanhada daquele homem feio, muito feio.
Certa vez, depois de ter tomado
todas as garrafas de Jack Daniels de um boteco no centro da cidade, quando poucas
pessoas restavam ainda no bar, Adoniran revirou a carteira e notou que tinha
poucas moedas consigo, tão poucas que sequer serviam para pagar uma dose de
uísque.
Atormentado com os dizeres
da placa atrás do homem forte noutro lado do balcão: "FIADO SÓ AMANHÃ. NÃO INSISTA",
Adoniran tinha de providenciar algum dinheiro para pagar suas inúmeras doses
de uísque, caso contrário, aquele violento barman não iria gostar.
Em uma das poucas mesas que
sobraram pessoas no bar, uma sombra lhe observava atentamente. Percebia seu
tormento. Sua falta de dinheiro e o volume de bebida ingerida.
Discretamente, a mulher que
lá estava chamou o forte barman, de barba rala no rosto, com a testa suada e
semblante bravio, e lhe perguntou o valor da conta de Adoniran. Pagou-a prontamente
depois da resposta do homem. Sim, ela tinha se apaixonado por aquela figura
franzina, pouco atrativa e com um ar melancólico e sofrido.
O homem do bar mandou Adoniran
ir embora. Também tinha notado sua falta de dinheiro e estava muito bravo com
aquela situação. Pensava ser ele caloteiro, mais um caloteiro.
Adoniran indagou-lhe que não
tinha como pagar os uísques que houvera tomado, ao que, de pronto, o barman
lhe falou que a mulher da mesa escura ao fundo do bar havia pagado.
Desacostumado com tais delicadezas,
Adoniran recheou o olhos de lágrimas e se dirigiu à mesa da mulher. Não podia
ver quem lá estava. O bar tinha pouca luz. Era iluminado por parcas velas e
ela tinha apagado a que em sua mesa estava.
Quando chegou perto da mesa,
iluminado por uma luz que vinha do poste da rua, o rosto da mulher começava
a se desnudar da ausência de luz, aparecendo para Adoniran suavemente o queixo,
o lábio inferior, o lábio superior, e parte do nariz da misteriosa mulher. Não
conseguiu ver seu rosto. A luz ainda era fraca. Muito fraca.
Adoniran sorriu e, antes que
pudesse agradecê-la, uma voz lhe chegou rápida aos ouvidos: "Sou apaixonada
por ti Adoniran". Soou como se um grande eco lhe tomasse conta da mente.
Espantado, Adoniran começou
a tremer os joelhos. Suar frio. Isso nunca havia acontecido com ele. Não sabia
quem era esta mulher. Não sabia o porquê.
Subitamente ele senta à mesa
e pergunta de onde ela o conhece, e porque ela se apaixonara por ele.
Calmamente a mulher explica
a ele que mora no prédio em frente ao seu, e que todas as manhãs ensolaradas
ela se dirigia à sacada para observá-lo. Que após ter notado sua ausência em
algumas manhãs (sim, Adoniran adormecera em várias oportunidades após chegar
embriagado pela manhã em casa), começou a procurá-los nos bares da cidades,
indicada por alguns vizinhos, para saber o que acontecida.
Adoniran, então, ouvindo a
história da misteriosa mulher, lembrou-se de uma certa vez, quando observava
Suzete, ter escorregado na sacada e, de inopino, ter dirigido sua luneta para
o alto, momento em que viu, no quinto andar do mesmo edifício de Suzete, uma
pessoa com uma luneta apontada para ele. No ímpeto da paixão platônica por Suzete,
não se atentou para o fato de alguém estar lhe observando. Nunca mais deu a
mínima. Esqueceu o fato. Esqueceu aquela pessoa que um dia seria sua, para sempre,
e que naquele momento, naquele bar, havia encontrado e lhe tirado da lama:
A mulher do quinto andar.