AMNÉSIA
- MEMENTO (E.U.A. - 2000)
A memória
é uma ilha de edição.
Wally
Salomão
Jogo de certeza e incerteza.
"Que graça tem uma
história quando você já sabe o que vem depois?", pergunta Leonard
Shelby para sua esposa, sobre o fato de ela estar lendo novamente
um mesmo livro, em determinado momento de "Amnésia" - Memento, o
segundo longa-metragem do diretor inglês Christopher Nolan. Quando
vemos um filme ou lemos um livro, normalmente esperamos ansiosos
pelo que vem a seguir. Em "Amnésia" acontece o oposto: contado de
trás para frente, o filme nos coloca ansiosos justo para saber o
vem antes, testando nossa própria memória para cada vez mais lembrar
do que ainda vai acontecer.
Em seu primeiro longa,
"O Seguidor" - Following, o qual produziu, fotografou, escreveu
e dirigiu, Nolan também lida com a curiosidade, a inquietude e a
obsessão humanas, ao contar, num clima noir, em preto e branco,
a história de um homem que tem mania de seguir pessoas e assim aprender
sobre suas vidas. Premiado em Roterdã em 1999, e passando despercebido
pelo Festival do Rio do mesmo ano, "O Seguidor" já mostrava a habilidade
de Nolan em construir narrativas que lidam de maneira original com
o tempo.
Muitos questionam o
pioneirismo da originalidade de Nolan, com "Amnésia", de contar
um filme de trás para a frente. Sendo ou não o pioneiro, o fato
é que Nolan usa esta linguagem a favor da dramaturgia. Sua opção
para a narrativa não-linear, quase "linear inversa", é essencial
para atingir seu objetivo, tanto que não poderia ser de outra forma.
Com esta edição, somos levados à própria memória fragmentada de
Leonard.
Tudo que sabemos sobre
Leonard Shelby (Guy Pearce, de "Los Angeles, Cidade Proibida" -
L.A. Confidential) é que ele era um investigador de uma companhia
de seguros que teve sua mulher brutalmente estuprada e assassinada,
e desde então sofre perdas de memória recente, o que o impossibilita
de fazer novas lembranças desde o ocorrido. Para continuar vivendo
e alcançar seu único objetivo, vingar a morte de sua esposa, Leonard
faz inúmeras anotações, inclusive tatuagens para notas de extrema
importância, e anda sempre com sua máquina fotográfica Polaroid
à tiracolo.
Ao longo de sua busca,
vemos que Leonard tem que lidar com pessoas das quais ele não conhece
nada além do que ele já dispõe anotado sobre elas de um encontro
anterior. Leonard confia nas notas, nos fatos, e não nas interpretações,
como diz ele, iludido que o hábito e a rotina tornam sua vida e
a busca de seu objetivo possíveis. O problema surge quando estas
próprias notas começam a ser questionadas.
O que é o Homem se
não tiver a memória? Eis a questão. "O presente são trivialidades.",
diz Leonard. Ao confiar somente nas notas, ele está sujeito à dúvida,
não só em relação à suas ações, mas sim em relação a ele mesmo,
à sua própria realidade. Poderia ele estar sendo manipulado para
matar a pessoa errada? E de que adianta vingar sua esposa se ele
não pode sentir o tempo para poder esquecê-la, e nem ao menos lembrar
de que matou seu algoz, a não ser por meio de anotações? Se a memória
é condição de existência, ela também se mostra aqui como condição
para a moralidade.
A grande virada de
"Amnésia", que se dá no final/início do filme, atinge o espectador
de uma forma avassaladora. Toda pessoa no cotidiano pode, mesmo
inconscientemente, mentir para si mesma para ser feliz, confiando
em notas falsas, avançando por caminhos cada vez mais distantes
de si mesma. Num plano maior, vemos que a Humanidade também confia
em notas. Cada povo surge inserido num contexto de "notas" preparadas:
a memória viva da História. Ao depositar confiança em "notas" como
a religião, a ciência e as relações de poder, o próprio Homem, inserido
no devir, no tempo, cria um sentido para a vida não cair no esquecimento.
A vida não é feita somente de certezas, e é nesse jogo de certeza
e incerteza que o Homem cambaleia, podendo aceitar - ou então até
se condicionar - à incerteza, se ela o faz feliz.
"Amnésia" é grande
talvez por não ter a pretensão de tratar de tantas questões, apenas
sugeri-las por meio de um filme de suspense noir, que já é a marca
do jovem diretor. Ao sair da sala de exibição, nos sentimos como
Leonard, quando ele se questiona se o mundo continuará lá quando
ele fecha os olhos. O mundo continua lá, e "Amnésia" será um filme
difícil de se esquecer.
Gabriel Cid 'Spooky'
PS- No DVD, é possível
ver o filme de maneira linear, respeitando a ordem cronológica.
Uma opção que não pode ser tida como um filme à parte pois, sem
dúvida, carece de toda a poesia e todo o sentido criativo da obra,
só servindo mesmo para matar a curiosidade e tentar elucidar certos
pormenores da trama.
Parte deste texto foi
originalmente publicada na edição #10, de setembro de 2001, do zine
virtual GRITONLINE ( http://www.gritonline.cjb.net
).
Gabriel
Cid Spooky |