FESTIVAL ABRE COM DECEPÇÃO

13 de maio de 2004

Mais cedo ou mais tarde, ia rolar. Depois de três grandes filmes sucessivos, Pedro Almodóvar tinha que acabar errando. E isso veio suceder justamente com A Má Educacão, o filme dele que foi o primeiro espanhol convidado a abrir um Festival de Cannes.

Recebido com frieza pela critica, o filme vende gato por lebre. Tem tido repercussão na imprensa porque parecia ser uma grave acusação contra a Igreja e os padres pedófilos.

Nem tanto, embora a história comece assim, acaba se complicando, pegando caminhos tortuosos e se perdendo. Acaba se tornando uma mera história de vingança pessoal. A sensação que eu tive foi que a fita acabou sendo mais um ataque aos atores, que são capazes de fazer qualquer coisa para conseguir um bom papel, não apenas dormir passivamente com o diretor, mas até mesmo matar. Pode ser verdade, mas o fato é que isso deixa um sabor desagradável na boca, principalmente porque compromete o personagem do herói (feito por Gael Garcia Bernal, o mesmo de Diários de Motocicleta, e cada vez mais parecido com um Pato!. Reparem bem, a boca e o jeito do Donald!). Usando curiosamente trilha musical (e também letreiros de apresentação) a la Hitchcock (muito Bernard Hermann, ou seja muito clima, apenas uma rara musica nostálgica), o filme tem um roteiro à moda de Almodóvar, ou seja, parece ser uma coisa e acaba virando outra. Assim, abre como a vingança de um travesti (Gael) que tenta se vingar do padre que abusou dele quando criança, ameaçando-o com chantagem (um roteiro chamado A Visita).

Mas depois a gente percebe que há outra figura importante, um diretor de cinema - Fele Martinez, que também esteve em Fale com Ela - que está procurando um tema para um filme, isso em 1980, logo nos primeiros anos da libertação de Franco, a chamada La Movida. E tem uma surpresa quando aparece em seu escritório um antigo colega de escola, por quem foi apaixonado (Gael) e que lhe apresenta justamente aquele roteiro que estávamos assistindo do travesti vingador.

E que agora é ator e deseja fazer o papel do travesti a qualquer custo. Eventualmente consegue, mas a história vai se complicar quando ele descobre que não é o antigo amor, mas o irmão mais novo dele. E que no fundo tem uma história mais complicada que envolve também o padre sedutor, que teria largado a batina, virado editor de livros, mas continuou pedófilo. Envolve também travesti viciado em drogas, o que ajuda a mudar o rumo de filme, transformando-o em uma história de assassinato entre marginais, sem que o culpado tenha oportunidade de se explicar (nos letreiros finais há explicação sobre o que sucedeu com os personagens nos anos vindouros, querendo dar a impressão de que seria uma história autobiográfica. Almodóvar nega que tenha sido seduzido quando garoto na escola. Mas não há a menor dúvida de que deve ter sido assediado e seduzido por atores dispostos a tudo, mesmo fornecer sexo a domicílio). Talvez porque o filme ficou dez anos em gênese, ele acabou ficando menos divertido e engraçado do que outros do diretor. Mas também não é ainda o filme importante que se precisa fazer sobre padres pedófilos (nem justifica a ira da Igreja e até dos circuitos de cinema na França, que recusaram-se a exibi-lo. Acontece tanta coisa que a gente acaba esquecendo que tudo aquilo teria sido causado pela fúria sexual dos padres e a repressão da Igreja. Almodóvar disse aqui que não é clerical, até porque não vê necessidade.

Acho que o pior inimigo da Igreja Católica é ela mesma, ela se degrada si mesma, afirma, ao menos diante das declarações sempre infelizes que eles dão na Espanha.

 

Citações

A fita tem algumas citações a outros filmes, em particular uma longa homenagem a Sara (Sarita) Montiel. É vendo o filme dela Essa Mulher (onde Sara faz uma freira que largou o hábito) que os dois meninos amorosos se masturbam mutuamente pela última e parece que única vez (além de afirmarem que ela era linda, depois tem um travesti que a imita cantando uma canção de La Violetera). Também os personagens vão assistir a um Festival de Film Noir (Negro) europeu. Almodóvar diz que na Espanha não existe tradição do gênero bem americano e que seus filmes favoritos no gênero noir são o O Destino Bate à Sua Porta com Lana Turner, Fuga do Passado com Jane Greer e dois com Gene Tierney, Amar Foi Minha Ruina e Laura. E também os filmes de Nicholas Ray. Diz que o cinema negro consegue transformar em espetáculo, em cinema, o que há de pior na natureza humana. E é isso que o atrai nos personagens, o mal que vive no coração dos personagens. Ele cita A Besta Humana, Terese Raquin.

De uma certa maneira ele também revisita alguns temas antigos (como travestis e seu mundo), mas não vê isso como um problema. Acha mesmo que foi preciso ter feito quatorze filmes antes para chegar a este, já na maturidade. Brinca dizendo: - Amadureci e não pude fazer nada para impedir isso. O tempo passou. Falo das mesmas coisas sempre, mas de uma maneira totalmente diferente. Dizendo-se pouco religioso Almodóvar afirma que deixou de acreditar em inferno ainda quando menino na escola. Mas que tinha fascinação pela liturgia católica. Diz ele: "Não creio em Deus mas nas cerimônias. Nos meus filmes uso os santos, Jesus, as imagens como elemento decorativo. Na verdade, meus conterrâneos são todos um pouco idólatras, meio pagãos em idolatrar estátuas ou em cerimônias como na Semana Santa em Sevilha".

Almodóvar prepara neste momento um roteiro chamado Tarântula, que deve ser feito com Antonio Banderas e Penelope Cruz. Mas diz que muda muito a história durante o processo de escritura. Que começa falando de uma freira de 80 anos que, de repente, vira uma jovem de 23 que deseja se mudar para a cidade grande e ficar famosa.

 

O Júri

Esperava-se um Quentin Tarantino ainda mais nerd e exuberante do que aquele que compareceu a entrevista coletiva esta tarde em Cannes. Mais careca, mais magro, mas sempre com seu riso meio idiota, Tarantino declarou que o júri não terá critérios. Que são 19 filmes, diferentes em tudo, origem, gênero. E que o critério será estabelecido conforme os forem assistindo.

Tarantino já esteve três vezes em Cannes, na primeira trouxe seu primeiro filme fora de competição (Cães de Aluguel) e foi assim que alavancou sua carreira. Depois ganhou a Palma de Ouro com Pulp Fiction. Agora é presidente do júri. Ou seja, diz ele: "Toda vez que desejei ou sonhei com alguma coisa, acabei conseguindo. Para mim, Cannes é o paraíso. Nós todos sonhamos em morrer e ir para o paraíso. E meu paraíso é passar duas semanas vendo filmes. Já estou no terceiro estágio do céu". Aliás, Kill Bill Volume 2 será exibido fora de concurso em Cannes e no domingo de encerramento, diz Tarantino, haverá uma exibição do filme completo, com as duas partes, na cópia que até agora era conhecida apenas no Japão e Hong Kong.

A mais famosa do júri, a americana Katheleen Turner teve pouco a dizer. Ela está cada vez mais gorda, com voz rouca e com cara de travesti. Não é à toa que ande fazendo um papel desses no seriado Friends. Pegando o mote, outro membro do júri, o diretor americano Jerry Schatzberg (O Espantalho) disse que para ele Cannes era boa comida, boa bebida, boas mulheres. (Risos).

A sempre bela Emmanuelle Beart que é muito politizada se declarou sensível às reclamações dos chamados Intermitentes, trabalhadores temporários da indústria do cinema que ameaçaram paralisar o Festival. Mas que agora chegaram a um acordo, eles terão um espaço livre para se manifestarem. Embora muita gente ache que eles não têm razão (trabalham três meses e têm seguro-saúde para o ano todo). Tarantino não teve dúvidas, afirmando que sou americano, não entendo do assunto e não tenho que entender. Meu trabalho aqui é julgar filmes.

Tarantino negou também que seu amor pelo cinema oriental possa atrapalhar, já que segundo ele um filme que é muito antecipado tem mais chance de desapontar. Muita expectativa segundo ele não ajuda, atrapalha. Mas de todos os membros do júri o mais divertido foi o comediante Benoit Pooldevorde que afirmou com cara-de-pau: "Nunca fui convidado oficial do Festival antes, nunca escolheram um filme meu, nunca me premiaram. Então vou aproveitar e me vingar. Vou fazer ganhar um filme medíocre".

 

Frio e Chuva

O Festival Internacional do Filme de Cannes (nome oficial) será aberto esta noite com cerimônia presidida e traduzida para inglês e francês pela atriz italiana Laura Morante (O Quarto do Filho) numa festa rápida que será mostrada pelo Canal Plus (e à qual a imprensa não tem acesso).

O tempo está frio e chuvoso em Cannes (9°C em Paris, 16°C aqui), sem presença do esperado sol. Isso torna mais difícil os deslocamentos para os jornalistas, como é o meu caso.

Fui instalado num hotel que fica a dois quilômetros do Palácio do Festival, cerca de meia hora de caminhada a pé. Subida na volta. A viagem também tem sido atribulada.

Quando passei via Lisboa, fiquei duas horas e meia na fila esperando ser atendido, embora estivesse apenas fazendo uma escala. Em Paris todos ficaram parados porque havia greve de uma hora dos bombeiros. Depois as pessoas se queixam que no Brasil que as coisas não funcionam.

É só viajar para descobrir que não é bem assim.

Aguarda-se também uma grande delegação de cineastas brasileiros para o dia 16, quando vai acontecer a noite brasileira. Assisti o filme de Almodóvar junto com José Wilker, diretor da Rio Filmes, que me contou informalmente que a escolha dos filmes brasileiros homenageados foi feita pelo próprio presidente do Festival, Thierry. E que deixou tudo para a última hora (Wilker havia selecionado Dona Flor e seus Dois Maridos), o que criou problemas porque nem sempre havia cópias legendadas e em bom estado. Parece que Hector Babenco ficou chateado de não estar incluído na seleção, com Pixote.

 

News agora da noite

O filme italiano a Conseqüência do Amor, de Paulo Sorrentino, que representa a Itália e será exibido quinta de manhã para a imprensa em Cannes, foi concebido, confessa o diretor, durante uma Mostra Internacional de São Paulo, onde estava convidado e hospedado num hotel (aparentemente o Maksoud) e observa os hóspedes. Assim foi que ele imaginou a história filme. Também quinta será exibido, fora de concurso, Tróia, a superprodução que estréia em todo o mundo simultaneamente esta semana com mais de vinte mil cópias. O elenco estará em peso aqui, inclusive Brad Pitt e Orlando Bloom. Já vi o filme concorrente de quinta, o japonês Daremo Shiranai (Ninguém Sabe), de Kore Eda Hirokazu, o realizador de Maborosi e do bonito Depois da Vida.

Inspirado em fato real, é a história de uma pequena família de quatro crianças, que ficam sozinhas se virando num apartamento, porque a mãe irresponsável some sem deixar notícias (e mandando algum dinheiro de vez em quando).

O filme não tem resolução (fiquei reclamando de um fim mais conclusivo, ao menos semelhante ao da vida real) tem duas horas e vinte de projeção (até agora é o campeão de gente dormindo). Mas não se pode dizer que é ruim. Bastante sensível, com excelentes atores infantis que retratam a deterioração progressiva do grupo. Mas não faz chorar nem emociona.

Gostei muito de outro filme que tem sua exibição oficial na quinta, na Um Certo Olhar, a comédia Bem-vindo à Suíça, da estreante Lea Fazer, uma comédia muito divertida sobre os hábitos e costumes suíços, a partir da história de uma família que parece herdar uma fortuna local, de origem duvidosa (aparentemente dinheiro roubado dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial). Uma comédia de costumes, de crítica social, super-agradável de se ver e que provoca bastante o riso.

Quem estrela é Vincent Perez, no papel de um primo suíço que é namorador, mas no fundo um bom sujeito. De vez em quando é bom, durante um Festival pesado, se ver fitas como esta.

Anunciaram hoje um novo filme concorrente, o documentário Mondovino de Jonathan Nossiter (obviamente sobre o mundo de criadores de vinho). Começou ontem (quarta) a exibição dos filmes num telão na praia, mesmo com frio e chuva, com o musical Hair de Milos Forman.

Por Rubens Ewald Filho