SEGUNDO DIA DO FESTIVAL DE CANNES

14 de maio de 2004

Um filme comercial, um blockbuster de Hollywood pode arruinar sua carreira comercial, ao menos na Europa, caso fracasse em Cannes, mesmo estando fora de competição.

Esta foi uma experiência triste para muitos filmes (o de abertura ano passado, Fan Fan la Tulipe, Godzilla). Mas o inverso também é verdadeiro, um bom filme passando aqui no Festival ganha um grande prestígio (como, por exemplo, E.T. de Spielberg ou Thelma e Louise). Por isso que a Warner arriscou com Tróia, e aparentemente acertou. O filme, que estréia esta semana no mundo inteiro, é um épico decente, bem feito, que sempre interessa. Que não exagera nos efeitos digitais (na verdade, poucos: para aumentar as multidões nas batalhas, para vistas gerais navais ou ancoradouros). Nesse ponto, é muito melhor do que Gladiador, onde todas as lutas eram artificialmente aceleradas, onde mal se podia perceber os atores lutando. Aqui, a cena clímax da luta entre Heitor (Eric Bana) e Aquiles (Brad Pitt) é feita de forma realista, convincente e parece que a história de que os dois se machucaram bastante na rodagem, não é conversa fiada.

Dá para ver que é verdade. O bom resultado de Tróia se deve certamente ao diretor alemão Wolfgang Petersen (História Sem Fim, Inimigo Meu), que acabou se tornando um grande técnico, um sujeito que sabe contar uma história com garra e competência. O roteiro desta vez afirma ser apenas inspirada na Ilíada de Homero e toma certas liberdades com a lenda. Não há interferência ou participação dos deuses (segundo eles, porque não quiseram embarcar na fantasia, que na tela poderia resultar ridícula). Na verdade, o filme todo procura ser realista (e por isso teria sido rodado no México e Malta, que parece mais a atual Turquia onde, segundo a produção, teria existido Tróia). É uma opção discutível. A fantasia faz falta, mas não compromete. Por exemplo, não se menciona o famoso Calcanhar de Aquiles (ele teria tomado um banho protetor dos deuses, mas foi seguro pelo calcanhar, que se tornou seu ponto fraco. Ainda que para não mudar muito a história, ele primeiro seja ferido no calcanhar, mas não de forma fatal, dando tempo apenas para ser mortalmente ferido por flechas. E quem atira as flechas é Páris, que no filme é feito por Orlando Bloom, que tinha uma função parecida em Senhor dos Anéis). O roteiro simplesmente tentou concentrar em duas horas e quarenta e cinco minutos, o máximo de incidentes e lutas possível, sem mergulhar em grandes aprofundamentos psicológicos (perdem nisso, personagens como Páris e Helena, que acabam virando coadjuvantes na trama). Naturalmente quando escreveram a história resolveram colocar Aquiles como o herói, até para ter um astro no filme. Por outro lado, não tiveram coragem de contar a famosa história homossexual entre Aquiles e Pátrocles (que, no filme, virou seu primo e afilhado, cuja morte provoca a vingança de Aquiles). Na coletiva, o roteirista se defendeu dizendo que não há nenhum trecho no poema original que indique que eles tivessem um caso ainda que, completou Pitt diplomaticamente, fosse normal isso na época, na Grécia antiga; preferiram acentuar o lado família por questões de espaço. Mentira. Obviamente, foi para o filme ter censura mais leve e não mexer em valores familiares polêmicos.

Outra inovação é a morte de Aganemon em circunstâncias diferentes (novamente a explicação foi falta de tempo). Ou seja, é uma nova leitura da lenda de Tróia, de seu famoso Cavalo que foi um presente de grego (todas expressões que entraram para o nosso cotidiano).

O épico funciona em quase tudo: trilha musical, fotografia, direção de arte (relativamente discreta e sem cair em cafonices) e resulta melhor do que o Helena de Tróia de Robert Wise, que saiu em DVD recentemente. Com uma grave exceção: quem disse que Brad Pitt tem capacidade para fazer papéis não naturalísticos? Fica bem de saiote (as pernas ficaram mais musculosas, sua pele continua com problemas, já que reza a lenda que ele não pode filmar à tarde porque estouram as espinhas e perebas). Mas quando precisar dizer frases mais empoladas (aliás, o filme não foge delas: tem aquela que afirma que ninguém ira esquecer desta guerra. Ou seja, todo mundo fala como se já conhecesse o futuro e soubesse o destino dos personagens. O que é um absurdo). Mas não é só onde Brad falha. Na cena em que ele fica sabendo da morte do jovem amigo-primo-amante, faz umas caretas horríveis, dignas do pior Marlon Brando, que o público em Cannes debochou (ainda que um pouco intimidado). No Festival, pela primeira vez em sua carreira, Brad apareceu de cabelo curtinho, falando baixo, mas bastante sorridente e acessível. E ainda bonitão. Mas teve muita competição. Não de Orlando Bloom, que veio de lenço na cabeça que o deixava parecido com uma lavadeira de Portugal, tipo mocinha. Alguém ainda acha esse moço bonito? Pois estão enganados. O melhor era Eric Bana, o Hulk que tem uma bela figura (ainda que estranhamente cômica). Quem roubou a festa mesmo foram as mulheres, todas lindas. Saffron Burrows (Andrômaca), estava com os cabelos lisos, e deslumbrante. A alemã Diane Kruger (Helena) é baixinha e menos marcante que na tela. Quem fica mais encantadora pessoalmente é Rose Byrne, que faz Briseis.

Estava esquecendo de mencionar a melhor cena do filme, que é naturalmente aquela em que Peter O’Toole como o Rei de Tróia, vem implorar para enterrar o seu filho. É isso que acontece quando se tem bons atores (Peter não veio a Cannes, assim como também não apareceu Julie Christie, que faz uma cena como a mãe de Aquiles. Estiveram porém dois grandes coadjuvantes ingleses, Brian Cox e Brenda Gleeson. E mais o sobrevivente de Senhor dos Anéis, Sean Bean).

 

O outro competidor de quinta

O único filme italiano competindo em Cannes este ano é As Conseqüências do Amor, do napolitano Paolo Sorrentino. Parece que ele teve a inspiração para a história quando estava em São Paulo, para a Mostra, onde apresentou o filme anterior L’ Uomo in Piu. E ficou observando a movimentação no saguão do hotel e imaginando quem poderiam ser as pessoas. Assim surgiu a história, num hotel suíço de um cinqüentão calado e discreto, que não fala com ninguém. Mas que tem uma vida secreta: ele serve para lavar dinheiro para a Cosa Nostra. Todo mês recebe uma mala com uma fortuna em dinheiro que deve ir para o banco. Fora disso, o sujeito nada faz. Até que encontra uma jovem vendedora (feita por Olivia Magnani, sobrinha da estrela Anna) a quem resolve presentear. O filme começa como drama existencial, mas acaba virando fita de Máfia, com ação e traições, inclusive final trágico. Tem ainda uma participação pequena de outro filho de celebridade, Adriano, filho de Giancarlo Gianini (como um surfista). Mas impressiona pela elegância da fotografia, do uso da música, na qualidade da edição. Uma fita de grande qualidade plástica, ainda que um pouco pesada para o público em geral (ela já foi comprada para o Brasil, ainda em produção, ao que parece pela Art Filmes). Falta comentar o melhor: quem está maravilhoso no filme é o ator central, Toni Servillo (que já estava no filme anterior do diretor). Um trabalho discreto, interiorizado, perfeito. E que mereceria até ganhar prêmios.

Por Rubens Ewald Filho