CANNES - TERCEIRO DIA

15 de maio de 2004

Uma das coisas que ficaram claras na entrevista coletiva do júri deste Festival é que Quentin Tarantino terá que brigar por suas idéias, principalmente com Emmanuelle Beart, que é totalmente oposta a elas. E com Katheleen Turner, que demonstrou ser de briga. Mas como ambas são atrizes e com certeza sonham em conseguir um dia que ele lhes escreva um grande personagem, resta confirmar se Tarantino gosta de alguma coisa mais do que cinema oriental.

Hoje na sessão de imprensa das oito e meia da manhã eu o vi aplaudindo bem animado (aliás quase só ele na sala cheia e indiferente), o novo filme de Emir Kusturica, que se chama Zivot Je Cudo (A Vida é um Milagre). Depois 2 horas e 34 horas minutos, o público estava aliviado de que o final havia chegado. É dos trabalhos mais histéricos, exaustivos e delirantes que ele já fez.

Eu que havia reclamado de Van Helsing, volto atrás. Este é muito pior. A primeira parte é uma chanchada total, num clima histérico onde todo mundo tropeça, cai, grita, xinga, enquanto a banda continua tocando aquelas marchinhas e mazurkas irritantes que Kusturica trouxe numa abertura da Mostra de São Paulo (e depois ficou irritado porque ninguém quis dançar).

Faz tempo que ele caiu do panteon dos grandes (já tem duas Palmas de Ouro aqui, uma pelo lindo Papai saiu em viagem de negócios - 85, outro pelo mais recente e confuso Underground - 95). Depois disso ficou meio queimado porque, quando houve a Guerra da Bósnia, ele ficou escondido,não tomou posição. E por anos se dedicou a ser ator e fazer filmes em Super Oito.

O que é triste sinal de que não tem mais nada a dizer. E na verdade, ele se repete em temas e estilo nesta comédia farsesca, passada nas montanhas que são fronteiras entre Bósnia e Sérvia, numa pequena estação de trens, no que seria a véspera da Guerra. O chefe da estação local (Slavko Stimac) é casado com uma cantora de ópera completamente destrambelhada e tem um filho jogador de futebol que foi convocado pelo exército e acaba prisioneiro. Na esperança de conseguir trocá-lo por outro prisioneiro, acaba dando abrigo a uma jovem mulçumana (loira e bonita, Natasa Solak) por quem se apaixona. Só que nenhuma ação é racional, tudo é extremado, maluco, em ritmo de chanchada brasileira (e ai a gente pensa, porque falam mal de quando é chanchada nacional e acham uma maravilha quando é da Bósnia?).

Na segunda parte, quando vira história de amor o filme melhora um pouco para concluir meio apressadamente, assumindo-se como Romeu e Julieta. Terminando pra cima, como o próprio título faz imaginar. Não se pode esquecer também o melhor do elenco, a fauna animal que inclui talentosos gatos, cachorros, gansos, ursos e um burro que deseja-se matar por amor não correspondido. Mas será que o júri vai gostar disso, sabe que Kusturica está se repetindo, está sem controle, e ainda não tomou posição? (sua crítica contra a guerra ainda se reduz a generalidades, falando mal da televisão e satirizando traficantes. Mas pintando um retrato simpático dos militares). Enfim, o filme é um exemplo claro do porquê nunca saio no meio de uma projeção. Se tivesse largado como me deu vontade, depois de 40 minutos, teria a impressão de que era uma bomba, insuportável e descontrolada. No final das contas, nem tanto. Apenas é um cineasta de talento que não tem muito mais a dizer.

 

Mondovino

Estava na Seleção Oficial mas fora de competição. Mas na última hora mudaram de idéia e entrou na lista principal. Não sei nem porque. Este Mondovino é um documentário feito em Digital (acho que em DVD, mas a imagem é muito ruim, altamente irregular) por um veterano cineasta chamado Jonathan Nossiter, que além de seus documentários (Resident Alien, 90) fez vários filmes de ficção (Signs and Wonders, com Charlotte Rampling, Sunday, com David Suchet).

Francamente não me lembro de nenhum deles mas, o Leon Cakoff recorda que Nossiter já esteve numa das Mostras dele, porque o rapaz em todo restaurante fazia questão de pedir o vinho mais caro do lugar. Faz sentido porque agora fez este longa (2h38) documentário sobre vinho (que também existe em série de TV, ao que parece em dez capítulos). O mais curioso: o filme começa no Brasil, mostrando empregados subindo em coqueiros para tirar coco (a música naturalmente também é brasileira e fala do assunto). Aí ele pergunta a um deles: e vocês fazem vinho disso?

Não, responde o brasileiro, apenas suco. Como se percebe, muito pouco tem a ver com o tema do filme, pelo jeito ele curte o Brasil. Porque já quase no final, para aqueles resistentes, volta a Pernambuco, onde no Vale do São Francisco visita um casal que está tentando criar uma vinícula por lá. Ainda em começo de projeto. Estranhamente não mostra nada do Rio Grande do Sul, onde supostamente teria nosso melhor vinho. Vai ver não dava para concorrer com os franceses ou da Califórnia que predominam na fita. No fundo, o filme documenta através de depoimentos e visitas, como o vinho está passando por uma transformação, globalização digamos assim.

vinho local, de gosto mais extravagante está morrendo e sendo substituído pelo vinho que pode ser exportado, de gosto mais generalizado (ou seja, que tenha fácil aceitação e que possa conseguir bom preço no mercado internacional). E para provar isso segue um comerciante francês que é consultor de diversas firmas, na Califórnia e os EUA que lhe abre as portas para as maiores vinícolas do mundo. Não pense que revele muitos segredos de fabricação. Aborda alguns problemas (por exemplo, o que fizeram na Segunda Guerra Mundial? Resposta padrão: venderam vinho para os nazistas e pronto). Mas o diretor tem a tendência de quando se toca num assunto sério, ele faz a câmera desfilar pela casa, mostrando os cachorros de estimação de nomes exóticos (ou no caso do Brasil, os micos que vivem na casa, numa casa da Califórnia, o sistema de limpar a piscina) .Não sei se isso é criatividade ou mera distração. Porque tira o foco do filme. Que é menos informativo do que deveria, menos interessante também (na verdade, os muitos que dormiram no meio não perderam grande coisa). E também não chega a defender o produto local francês como diziam. Ao contrário, deixa claro que está perdendo a luta para o exportador americano.

 

Kiarostami

Nunca fui muito admirador deste diretor iraniano. Mas nunca também ele chegou ao ponto de fazer um filme inteiro, com uma única câmera DV, num carro, mostrando ele falando. Nada mais.

Chama-se 10 to Ten e teoricamente seria uma lição de cinema dele, em cima da experiência que fez no filme Dez (onde ele contava histórias de mulheres que entravam num táxi, sem mover a câmera). Aqui radicaliza. Enquanto ele mesmo dirige a Van pelos arrabaldes de Teerã, ele vai falando de forma monótona (com narração voice-over em inglês) sobre o que acha que é cinema e como se deve fazer filmes (se dizendo um autodidata, ele depois de culpar o cinema americano por tudo de ruim que há no mundo, pior até que os militares, conclui que se quiser fazer sucesso é preciso seguir o modelo hollywoodiano). Um crítico chegou a dizer que seria melhor fazer logo um programa de rádio, não um filme. Eu lutei contra o sono no que é certamente o filme mais monótono que já vi na vida (e isso não é pouco). Mas também auto-complacente e pretensioso. Aceitava tudo menos quando ele pára o filme, pede licença e sai de frente da camêra. E a gente percebe pelos ruídos que ele desceu para fazer xixi, ao menos isso fora da câmera. Será que a gente tinha que passar por isso? Nem Welles nos seus delírios de genialidade chegou a essa baixaria.

Mas como não bastasse Abbas Kiarostami (que ganhou a Palma por O Gosto de Cereja, outro campeão em fazer as pessoas dormirem), tem outro filme em exibição no Festival, que se chama Five (Cinco) e que são apenas cinco capítulos (como se vê está reduzindo e vai acabar no Zero) de imagens que ele capturou durante dois anos e que lhe faziam lembrar cenas de sua juventude. Eram sete mas, suprimiu dois (também os lugares não são identificados e o último deles é à noite, rodado entre 23 horas e 1 da manhã). Noutra seu Kiarostami não me pega.

 

News

Foi o maior sucesso a entrada de Brad Pitt com sua mulher Jennifer Aniston para ver Tróia. Chegaram a provocá-la, perguntando se era verdade que a mulher grega era a melhor do mundo (porque Aniston é descendente de gregos). Ele riu e fugiu. Está querendo me comprometer, cara... Em casa tenho que dizer que sim. Mas aqui o que responder, vou me dar mal. Os franceses deliraram com A Má Educação de Almodóvar, que no primeiro dia em cartaz nos cinemas locais deu 55 mil entradas (mil a mais que Fale com Ela). Recebido com aplausos de pé na sessão da noite (o que na verdade é praxe e não quer dizer muito). Tarantino declarou em seu costumeiro linguajar: Gostaria que o filme estivesse em competição. É uma Fucking masterpiece (obra-prima), um filme impressionante (fucking amazing filme). Na revista Film Francais, o filme também foi muito elogiado (mas também teve boa média o japonês Ninguém Sabe). Almodóvar falou: Se me perguntarem o melhor lugar do mundo para se estar é aqui neste palco (na abertura, onde foi cercado por suas musas, Victoria Abril, Carmen Maura, Angela Molina, Marisa Paredes e Leonor Watling). A estréia do filme foi como um sonho. Me disseram que o público de Cannes era difícil mas foram muito ternos e generosos. Anunciaram em Cannes que a comédia francesa Caos de Coline Serreau, atualmente em cartaz no Telecine Premium será refilmada nos EUA, no fim do ano com Meryl Streep e Aishawarya Rai (de House of Sand and Fog). É a história de uma dona-de-casa que ajuda uma prostituta árabe que apanhou de seu cafetão (Catherine Frot e Rachida Brakni fizeram os papéis originais). Os filmes à venda parecem bem fracos. Mas há dois que aparecem curiosos. Ambos da Millenium, Edison, um policial com Morgan Freeman, LL Cool J, Kevin Spacey e a estréia no cinema de Justin Timberlake e a comédia romântica Crazy in Love com Josh Hartnett e Radha Mitchell. Também corre no Festival que os Irmãos Weinstein da Miramax fizeram uma oferta para comprar sua parte do filme Fareinheit 9/11 de Michael Moore. Ou seja, assim se livrariam da Disney e distribuiriam o filme de forma independente. Fala-se também muito aqui numa possível autobiografia de Harvey Weinstein onde ele contaria a verdadeira historia da Miramax. Primeira estrela que apareceu para posar de biquíni e promover um filme que desejam financiar, Sean Young, bem menos bonita do que nos tempos de Blade Runner. O filme vai se chamar A Killer Whitin. Outro que veio conseguir dinheiro foi o diretor Neil Jordan. Ele largou o cinema durante dois anos para escrever um livro (chamado Shade), quando não conseguiu dinheiro para produzir uma fita que estava para começar chamada Bórgia. Seu novo filme será adaptação de um livro irlandês, Breakfast on Pluto, de Patrick McCabe, sobre um menino que é criado como menina e custa a perceber isso (o papel será feito por Cillian Murphy, o pai pode ser feito por Liam Neeson).

 

Urgente: Surge um candidato a Palma

O boca a boca já era bom, já que na Internet o diretor coreano Park Chan-Wook é cultuado e o famoso site Aint it cool News, havia escolhido um filme dele, Sympathy for Mr. Vengeance (2002) como o melhor do ano passado. Não duvido nada que o fato de seu novo filme estar concorrendo tenha sido uma sugestão do presidente do júri Tarantino, porque o filme tem a cara dele.

Chama-se Old Boy e mesmo os que irão detestá-lo têm que admitir seu impacto e o talento do realizador. Feito com a garra e criatividade de Nikita de Luc Besson, só que com a tecnologia já mais avançada e a filosofia por trás de tudo completamente oriental. Sou grande admirador do cinema do Oriente, seja Hong Kong, agora as emergentes Tailândia e Coréia do Sul, de onde finalmente parece estar vindo algo de novo. E Old Boy é novo e é velho. Baseado numa antiga história em quadrinhos japonesa, de Minegishi Nobuaki e Tsuchiya Garon, traz um excelente ator no papel central (Choi Min- Sik), numa história que não é tão linear quanto eu vou tentar fazer aqui. Ele é um bêbado e desordeiro, que é fechado num quarto vigiado durante 15 anos.

Sem explicações. Certamente foi colocado ali por um inimigo (já que existiria esse tipo de organização e punição). Quando consegue sair finalmente sai em busca de vingança. Ou seja, é vingança por trás de outra vingança muito mais elaborada, que inclui uma série de reviravoltas chocantes (uma tortura onde se arranca os dentes da frente do inimigo. Sem esquecer outro momento forte quando a língua de alguém é cortada). O fatalismo vem do oriente mesmo, o que dá um clima de tragédia à aventura, que beira a ficção científica (porque alterna cenas de delírio provocado pelo antigo hipnotismo).

Extremamente bem realizado, com todos os tiques de visual atual (mas não excesso de efeitos digitais, não é Van Helsing, Deus nos livre e guarde). É certamente mais doentio, trazendo como herói um sujeito com cabelo desgrenhado, nenhuma moral, extrema violência e que ainda estraga a vida daqueles que ama (mas a fita se pergunta, mesmo sendo ele pior que uma besta, também não tem o direito de viver?). Só que é mesmo um filme muito complexo para ser descrito, é uma experiência áudio-visual com esplêndida fotografia e montagem. Por isso mesmo acho muito possível que seja um dos prováveis premiados de Cannes 2004. Old Boy passou sábado a noite, junto a outro concorrente, o desenho animado Shrek 2.

E a novidade foi que a Dreamworks trouxe a Cannes quase todo o elenco central do filme, incluindo Julie Andrews, Eddie Murphy, Cameron Diaz, Rupert Everett, Antonio Banderas, Mike Myers, Jennifer Saunders, Alain Chabat. Ou seja, tivemos estrelas na Croisette.

Por Rubens Ewald Filho