CANNES 2004: UM BALANÇO FINAL

23 de maio de 2004

Parecia que o presidente do júri de Cannes 2004, Quentin Tarantino não tinha muito a ver com o filme de Walter Salles, Diários de motocicleta. E de fato, não gostou dele, tanto que o filme ficou fora da premiação. Só levou o prêmio paralelo Ecumênico e um prêmio especial chamado Vulcain de L’artiste, entregue a Eric Gautier, diretor de fotografia de Clean de Assayas e o Diaáios. Injustiça ficar de fora? Totalmente, embora não seja nenhuma obra-prima, o filme estava certamente entre os seis melhores do Festival. Com certeza era muito melhor do que os premiados Exils, ou Doença Tropical. Foi um erro sem dúvida, e injustiça.

Mas a verdade é que em termos gerais o júri acertou. Nunca vi em 21 anos de Festival tamanha comoção numa sala quanto à vitória de Farenheit 911 de Michael Moore. A platéia aplaudiu entusiasmada, em estado de euforia e exaltação. Eles realmente gostaram da fita (que teve aplausos por 20 minutos em sua estréia) e, por onde andou, Moore foi ovacionado. A ponto de ficar comovido e mesmo surpreso. Afinal é a primeira vez em sua história que Cannes dá a Palma de Ouro para um Documentário. E num júri que tinha a maioria de americanos (eles eram quatro e apenas um francês). E com o apoio de todos, menos certamente de Mr. Bush.

 

Os erros do júri

Todo júri faz bobagem. Cannes também. Deu o prêmio do júri empatado para o filme tailandês Doença Tropical de Apichatpong Weerasethakul (primeira vez que filme tailandês concorre, e primeira que é premiado). O filme é naif, ingênuo e provoca reações extremas. Muita gente odiou – eu não fui o único - mas o Cahiers du Cinema e sua turma adoraram. Enfim... Ao menos é ingênuo e gay, o que não deixa de ser curioso. O empate foi com um prêmio para a atriz negra e idosa, Irma P. Hall que fez The LadyKillers (ela não estava presente, disseram que ela estava num hospital internada). É uma senhora que faz direitinho, mas foi coadjuvante a vida inteira e não deve passar disso. Um prêmio bem dispensável.

Outro erro grave foi o prêmio de direção para Exils de Tony Gatlif, uma fita que justamente é muito mal-dirigida, parece que o diretor deixa a câmera solta com medo de cortar. Mas Tarantino gosta dessas porra-louquices...

Melhor ator do Festival: o prêmio foi para um ator infantil japonês chamado Uagira Yuya que estava de volta em casa, onde cursa o terceiro ano e acabou de ir mal num exame!

O menino está muito bem no filme, mas o mérito certamente é do diretor e não dele. E depois as outras crianças também estão bem. Seria melhor ter dado um premio coletivo e não premiar uma criança, também uma primeira vez em Cannes, ao menos que me lembre. Não concordo: criança tem que ter prêmios à parte. Não dá para ser julgado pelos mesmos critérios de adultos.

 

Os acertos

Até que acertaram bastante. Vejam só: a Palma para Moore era irresistível e inevitável. Até porque não havia mesmo outro com o mesmo impacto (o Festival lembrem-se, foi bastante fraco, não teve qualquer obra-prima), Já se sabia também que Old Boy, o filme coreano era o favorito de Garantin e não escaparia sem prêmio (levou o Grande Prêmio do Júri, o segundo em importância. Eu gostei do filme e acho merecido). A melhor atriz foi um prêmio de consolação para Maggie Cheung, que o havia perdido por Amor à Flor da Pele. Agora ganhou por Clean, feito por seu ex-marido Oliver Assayas. Um presente para ela que é uma das mulheres mais charmosas (ainda mais bonita em pessoa) e interessantes do cinema atual.

Melhor roteiro: outro acerto - ganhou o filme francês Como uma Imagem escrito e estrelado por Agnes Jaoui e Jean Pierre Bacri (também casados na vida real). Ele fez coisa inédita, subiu as escadarias e todo o tapete vermelho fumando; só mesmo na França uma coisa dessas pode acontecer hoje em dia.

 

Curtas

Os curtas foram votados por outro júri, presidido pelo russo Nikita Mikhaholv que, como sempre, falou demais. E escolheu dois dos menos ruins, Palma para o romeno Trafic (uma história interessante, passada com rapaz preso no tráfico, mas falha porque não tem final) de Catalin Mitulescu.

O segundo prêmio foi para o belga Flatlife, uma animação simpática e fraca de Jonas Geirnaert, de 21 anos (o outro tem um ano a mais e os dois terminaram agora a faculdade).

Jonas no agradecimento, sem saber se Moore iria ganhar, fez discurso elogiando o outro e pedindo para todos os americanos não votarem em Bush!

 

Câmera Dor

O prêmio para estreante votado por júri liderado pelo ator inglês Tim Roth deu o prêmio para Or (meu tesouro) de Keren Yedaya (que passou no Cinema da Crítica), que assim foi o primeiro israelense a ser premiado em Cannes. Mas quando agradeceu ela fez um discurso tocante. Pediu mudanças no mundo, dedicando o prêmio a todas as pessoas que são livres, e recusando a escravidão. Finalmente disse que isso incluía os palestinos e que ela era um dos muitos israelenses que são contra a ocupação dos territórios palestinos. Muito aplaudida, obviamente, ela vai criar com isso polêmica em seu país. O filme não vi, mas é super-elogiado.

 

Fofocas da entrega e da coletiva

Se alguém já assistiu uma entrega de prêmios de Cannes sabe que nada tem a ver com o Oscar, que é um primor de organização. Aqui é tudo badernado, pretensioso e confuso. A apresentadora foi a italiana Laura Morante que não tem a menor experiência de palco.

Todo prêmio tem uma madrinha que antes tem que dizer um texto poético sobre a categoria. Mas a louca da Beatrice Dalle recusou dizer sua fala, afirmando que ela era ridícula e não o faria. Isso por três vezes. Para embaraço geral da platéia e de Laura. Outra que se perdeu, esqueceu o texto e ficou enrolando, foi a atriz de Rivette, Janine Babar. Outro vexame. Entre os padrinhos franceses tivemos Marion Coutillard, Vincent Cassel, Diane Kruger (a Helena de Tróia), Virginie Ledoyen, a elegante e belíssima Charlize Theron e os astros de De Lovely, Ashley Judd e Kevin Kline, ela linda e ele engraçado e brincalhão. Americanos sabem fazer essas coisas. Franceses são caipiras.

O Câmera Dor deu duas menções honrosas, para Passagens de Lu Cheng e Sonho Amargo de M. Amiryouseff, o primeiro é chinês, o segundo iraniano. Maggie Cheung também foi aplaudida de pé pelo júri ao receber seu prêmio.

O ator que faz Old Boy, o filme coreano, também subiu ao palco e fez questão de agradecer os polvos vivos que ele teve que comer numa cena famosa do filme (na coletiva, ele completou dizendo que fez quatro vezes a cena e só na ultima o polvo se comportou direito).

Tarantino disse: "tenho o orgulho de entregar a Palma para Fareinheit". E todos entraram em aclamação.

Moore entrou no palco e virado para ele, perguntou: "- O que é que vocês me fizeram?"

"Estou assoberbado por este prêmio... Tenho certeza de que agora ele vai conseguir distribuição na Albânia! E todos vão poder assisti-lo em todo mundo menos nos Estados Unidos.

Mas suspeito que com o prêmio vocês garantiram que o povo americano verá este filme (depois ele confirmou que a distribuição ainda está em negociação, não foi fechada, mas está encaminhada). Muitos querem esconder a verdade, mas vocês a tiraram do armário. Isso me lembra o grande republicano Abraham Lincoln que sempre dizia que o povo sempre entende a verdade. Fui para os EUA para a festa de graduação (Master) de minha filha e dedico esse prêmio a ela, e a todas as crianças da América e do mundo que sofreram.Tenho hoje a esperança de que as coisas irão mudar para melhor. Não estou sozinho. Quero me assegurar que, aqueles que morreram, não tenham ido em vão. Sempre amei ir ao cinema e me divertir. Espero ter feito um filme com que os outros se divirtam. E aprendam um pouco.

Mais tarde na coletiva, Moore contou o que Tarantino lhe disse no palco em particular:

"Queremos que você saiba que o prêmio não foi político, que no júri temos muita gente de idéias diferentes e alguns sem idéias políticas. Demos a Palma porque achamos este um grande filme e você o ganhou por sua arte de cinema. "

Moore também fez as seguintes declarações:

"Eu sou um freqüentador de cinemas, não vejo DVD, nem pré-estréias. Sou um filmgoer.

E para mim é um privilégio que minha filha tenha se formado pelo Sarah Lawrence College aos 22 anos (eu e minha mulher temos apenas o secundário, a high school) em Women’s History (História da Mulher). Acho que agora, meu filme será visto com um pouco de esperança.

Tenho certeza que as pessoas irão entender melhor quando ouvirem a verdade. Esse é o poder do cinema. Sei muito bem que a imprensa de direita americana irá dizer que foi um prêmio dos franceses e irão debochar e criticar novamente os franceses. Esqueceram que os franceses sempre foram amigos. Foram eles que nos apoiaram para nós termos nossa independência.

Foram eles que nos deram a Estátua da Liberdade. E eles nos disseram a verdade quando embarcamos na Guerra errada. Eles e os canadenses, os irlandeses etc... Agora devemos desculpas a eles... Não é um prêmio francês, mas internacional...

Para mim o cinema vem antes da política. Não quer fazer filmes que ninguém quer assistir.

Se quisesse fazer sermão seria pregador, se quisesse ser político, iria me candidatar.

Quero fazer cinema que seja uma grande experiência, Quem sabe meu filme irá ajudar a unir as pessoas (como Silent Spring de Rachel Hunter uniu os ecologistas).

Mas não se pode esperar muito, num país onde cinqüenta por cento da população não vota.

Quando Bush roubou a eleição e nós não o impedimos. Esse primeiro ato imoral provocou os outros. O que vai fazer quando souber do prêmio? Será que ele sabe o que é Cannes?

Deve se afogar comendo pretzels... Ou dizer que está orgulhoso que um filme americano ganhou, mesmo sendo contra ele... "

Por Rubens Ewald Filho