DIÁRIO DE NOVA YORK 2005 - 1ª PARTE

12 de janeiro de 2005

Esta é a Nova York de sempre, nesta época do ano: frio de dois, três graus, chuvinha fina, cidade vazia. A única diferença que senti foi que acabou aquela história do terror institucionalizado, afinal Bush foi eleito, não é preciso mais continuar nos assustando o tempo todo.

Tenho corrido para ver os filmes do Oscar, é um ritual que tenho feito nos últimos cinco ou seis anos. É o melhor momento, porque todos os filmes importantes ou com alguma pretensão ao prêmio estão em cartaz (já que os votantes têm que devolver tudo preenchido até dia 15 e no próximo domingo, 16, teremos a entrega do Globo de Ouro). O difícil é correr de um para outro, já que os horários são desencontrados e alguns (O Aviador - 169 min, O Fantasma da Ópera - por volta de 160 min, Million Dollar Baby - 132 min, Spanglish - 128 min), muito longos.

Ontem passei o dia inteiro no cinema, desde as 11 da manhã e só consegui ver quatro filmes. Mas são ossos do ofício.

Outra coisa importante sobre o Oscar saiu primeiro no Entertainment Weekly, depois no New York Times: eles simplesmente ligaram para a firma de contadoria que faz o controle da votação, a Price Waterhouse Coopers, que lhes explicou o confuso critério para apurar os votos dos indicados. Como sabem, quem vota são os membros de determinada categoria ou branch. No caso dos diretores, são 300, os atores são 1.277 (este ano a academia tem um total de 5.808 votantes). Esses sócios têm que votar nos indicados de sua categoria por ordem de preferência, de 1 a 5 (fora disso só podem votar no melhor filme). Para ser considerado indicado, a pessoa ou filme tem que ter um número mínimo de votos, que seria o número de indicados, em geral cinco mais um. Naturalmente dos votos que retornaram (o que, segundo eles, é muito alta a percentagem, quase todos os sócios votam). Meio confuso, né? Mas seria assim, no caso dos atores: o número de votantes (1.277) dividido por 6: para ser indicado ele teria que estar 212 vezes em primeiro lugar. Segundo eles, nesse sistema o voto é contado apenas uma vez. E traduzindo literalmente: se na primeira passada não saírem os indicados, ou só alguns, eles pegam os que sobraram e redistribuem baseados agora na segunda escolha e no mesmo processo. Ou seja, ao contrário de outras votações, onde todos têm pontos, aqui no Oscar o que vale mesmo é quem é indicado em primeiro lugar e depois segundo. O terceiro em diante está danado. O que muda saber disso? Que aquele que tem um grupo fiel de admiradores tem mais chance de ser indicado do que os desconhecidos e que de agora em diante as campanhas estarão mirando sempre a top choice, a escolha central e não as outras. Dizem que Michael Moore tem feito isso, porque se tiver 50 engajados que lhe dêem uma primeira escolha, já garantiria seu posto. Francamente acho que a Academia não vai ficar nada satisfeita com essa revelação e agora irão discutir o método, que não me parece dos mais simples ou justos. Enquanto isso, deixa eu contar sobre os dois filmes que parecem ser os favoritos para a corrida do Oscar (vi ambos no mesmo dia) Million Dollar Baby e O Aviador.

 

Million Dollar Baby

Não sou especial admirador de Clint Eastwood como diretor, fazendo minhas restrições a muitos de seus filmes que parecem ter sido feitos às pressas e forma descuidada, e com grande quantidade de cenas escuras (ele tem mania de gostar de sombra). Mesmo Sobre Meninos e Lobos, não achei nada de tão especial assim, apesar do delírio da crítica americana. Pois agora ficaram ainda mais loucos, elogiaram mais ainda este Million Dollar Baby (no Brasil, em fevereiro, pela Europa Filmes), que é até um filme relativamente pequeno e modesto. Como a maior parte da crítica, eu não vou contar toda a história, nem estragar a surpresa do enredo. Basta dizer que não é uma versão feminina de Rocky, o lutador. Ao contrário do que está sendo vendido é um filme pesado, humano, trágico e por isso mesmo, possivelmente o que Clint fez de melhor em toda sua longa carreira. Aqui a discrição que é sua marca registrada é muito bem-vinda, elevando a fita para algo mais do que uma mera história de boxe feminino.

Já houve uns poucos outros filmes sobre o tema, mas o bom daqui é que tudo é feito com a maior dignidade, sem demagogia, sensacionalismo ou exageros. Clint faz um velho treinador (muito envelhecido, também melhor ator do que nunca) que com relutância aceita treinar uma garota ambiciosa (Hilary Swank, que depois do Oscar de Meninos não Choram andou fazendo umas bobagens, mas finalmente voltou a acertar. Não está nem mesmo masculinizada demais). É ajudado por outro veterano, que se torna o narrador da história (Morgan Freeman, que é bem capaz também de ser indicado como coadjuvante e até mesmo ganhar). Juntos eles vão se tornando amigos, fazendo uma boa carreira até chegar ao título. E mais não digo. Basta ressaltar que evita-se o dramalhão (por exemplo, no conflito com a família vulgar e pobre, que deseja apenas se aproveitar dela e quer ficar com o dinheiro, sem ao menos disfarçar sua desaprovação).

E a amizade do velho com a moça é mostrada com muita ternura, delicadeza. O único problema que vejo no filme é comercial, já que parece ser fita de homem quando na verdade é fita de mulher, precisa mesmo dos prêmios para ser melhor vendida e apreciada. Merece o prestígio que está conseguindo.

 

O Aviador

Certamente este é o filme mais bonito do ano. A produção que reconstitui a Hollywood dos anos 30, inclusive o lendário Coconut Grove é um esplendor, toda desenhada por Dante Ferretti (que trabalha sempre com Scorsese, aliás é toda sua equipe que se reúne novamente). Sem esquecer o fio narrativo da história. Ficamos sabendo de Howard Hughes cineasta, playboy, neurótico, milionário. Mas a ênfase mesmo, conforme ele gostava de dizer, Hughes era antes de tudo um aviador, responsável por quebrar recordes de velocidade e distância e principalmente por investir sua fortuna pessoal (o filme não deixa claro como a adquiriu, já começando com ele rodando seu primeiro filme, Hell’s Angels; não mostra nem mesmo como descobriu sua primeira estrela, Jean Harlow, que mal é vista na figura da cantora Gwen Stefani, que por sinal não tem nada a ver com ela). Foi por causa desse dinheiro investido em pesquisa que a aviação cresceu tanto (ele foi dono da TWA e lutou contra o monopólio da Pan American; o forte do filme é sua luta contra uma investigação do congresso, onde é pressionado por um político corrupto, muito bem feito por Alan Alda). Falei em bonito. Acontece que Scorsese resolveu mexer no colorido, de forma que a fita ficou com as cores do tempo do Technicolor, ou seja, tudo muito brilhante e constratado, extremamente bonito e adequado. Ao contar a história de uma lenda de Hollywood, um notório produtor-diretor-dono de estúdio (RKO), ele está em seu elemento, mostrando trechos inteiros de Hell’s Angels (que parece estar saindo aqui em DVD), um pouco de O Proscrito e dando vida a algumas de suas namoradas, mais precisamente Ava Gardner, Faith Domergue e principalmente Katharine Hepburn. Ai começam os problemas, de liberdades que o roteiro tomou com a história. Ava, por exemplo, aparece em 1939, quando na verdade entraria na história sete anos depois, ou coisa que o valha. E menciona Sinatra, que também ainda não estaria no pedaço naquele momento. E para piorar, a inglesa Kate Beckinsale não se parece nem um pouco com ela (por outro lado, Ava é mostrada num ponto de vista muito positivo, revelando o bom caráter que sempre foi). Essa falha porém é quase corrigida por Scorsese, que teve a luz de escalar para o papel de Katharine Hepburn uma atriz espetacular que dá um show, se bem que já esperado: a australiana Cate Blanchett. Sem cair na mera imitação, mas se assemelhando na maquiagem, no cabelo, nos gestos e principalmente na voz, ela faz uma encarnação perfeita, como raramente vimos antes. Ajudada ainda porque o personagem se torna a principal figura feminina, graças à sua originalidade e carisma (o filme conta que Hughes teria ajudado a esconder o romance dela com Spencer Tracy, que era casado, evitando assim o escândalo. Nunca ouvi ou li sobre isso, mas enfim... Pode ser).

O filme, porém, erra em não dar mais informações (não tem sequer ao final aqueles letreiros para informar quando morreu, que foi ficando cada vez mais louco, que se casou com a estrela Jean Peters e possivelmente também com Terry Moore, enfim aquilo que a gente gosta de saber). E talvez não construa um retrato sólido de quem foi Hughes, justamente porque não se aprofunda nas informações, limita-se a registrar que ele era traumatizado com germes e foi ficando progressivamente mais recluso e maluco. Leonardo Di Caprio, também co-produtor, é um bom ator e convence plenamente como o jovem herói, mas tem certa dificuldade para envelhecer (principalmente no porte, na postura e peso). Ainda acho um bom trabalho, num filme que não cansou, mas é lógico que é preciso levar em conta que sou aficcionado do período e da temática, portanto posso ter uma involuntária adesão ao filme. Resta saber se a Academia dará finalmente o Oscar de diretor para ele. Porque a fita não tem fôlego de obra-prima, é boa, muito boa. Mas na comparação, talvez a modéstia e sinceridade de Million Dollar Baby tenha mais impacto.

Amanhã continuamos falando dos filmes e do Oscar.

Até lá.

Por Rubens Ewald Filho

(fotos: divulgação (c) Warner e (c) Miramax )