11
de outubro de 2004
Agora
que a Imagem lançou KILL BILL VOL. 1 em DVD, e que sua
continuação KILL BILL VOL. 2 finalmente chegou
aos cinemas nacionais (em ambos os casos, com um considerável
e injustificável atraso), vale a pena revisarmos este
novo clássico de Quentin Tarantino.
KILL
BILL: PARA VER
O maior
cineasta norte-americano surgido nos anos 90, depois de seis
anos em jejum voltou no segundo semestre de 2003 com
uma obra até certo ponto inesperada, mas que possui sua
marca registrada: KILL BILL, que por ter ficado bem longo foi
dividido em dois "volumes". A gênese de KILL
BILL remonta à época da filmagem do antológico
PULP FICTION, quando "Q" (Quentin) e sua estrela "U" (Uma
Thurman) esboçaram a história da "Noiva",
uma assassina profissional de um grupo de assassinos que é uma
versão sombria das PANTERAS, chefiado pelo misterioso
Bill. No ensaio do seu casamento, grávida, ela sofre um
atentado de seus ex-colegas. Mesmo após ser baleada por
Bill na cabeça, ela sobrevive e aparentemente perde o
bebê. Depois de passar quatro anos em coma a Noiva inicia
sua vingança, eliminando seus antigos companheiros um
a um, até finalmente confrontar Bill.
Na
primeira parte dessa trama de vingança, Tarantino
usa e abusa de uma série de referências pop retiradas
do cinema e da TV dos anos 60 e 70, o que a crítica esnobe
chamaria de "lixo cultural", as recicla e o resultado é um
filme violento, com menos diálogos e mais ação
do que os anteriores do diretor. Então, se você já é um
quarentão, reconhecerá facilmente as homenagens
aos filmes asiáticos de samurai e kung fu, policiais e
séries de TV norte-americanas: de cara, o filme começa
com o logo dos "Shaw Bros.", que por anos produziram
em Hong Kong centenas de filmes de baixo orçamento; o
traje amarelo de Uma Thurman é uma réplica do usado
por Bruce Lee, o maior astro das artes marciais, em BRUCE LEE
NO JOGO DA MORTE (o tênis, inclusive, é do mesmo
modelo); as máscaras dos membros da gangue Crazy 88 são
iguais à que Lee utilizava no seriado de TV O BESOURO
VERDE; o ator Sonny Chiba, muito popular no Japão, interpreta
o fabricante de espadas aposentado Hattori Hanzo; David Carradine,
o astro da famosa série de TV KUNG FU, encarna Bill (de
quem só ouvimos a voz no Vol. 1); O-Ren Ishii (cuja origem é contada
num violento animê) é interpretada por Lucy Liu,
uma das PANTERAS do cinema. Temos também homenagens ao
diretor japonês Kinji Fukasaku (a atriz Chiaki Kuriyama
repete aqui praticamente o mesmo papel de assassina que viveu
no último filme de Fukasaku, BATTLE ROYALE, de 2000).
Há referências a outros gêneros, até mesmo
JORNADA NAS ESTRELAS é homenageada: o provérbio "klingon" que
abre o filme ("A vingança é um prato que se
come frio") foi retirado do melhor filme da série,
JORNADA NAS ESTRELAS II: A IRA DE KHAN (1982). Tudo isso é complementado
por uma violência inédita em filmes do diretor -
há uma profusão de mortes, cabeças e membros
decepados, combates corporais e sangue espirrando em uma escala
tão grande que provoca risos, ao invés de chocar.
Também não faltam os cenários fake e deliciosos
diálogos tolos, típicos de seus filmes.
Já no
volume 2 de KILL BILL, não temos exatamente "mais
do mesmo", e por esta razão o filme decepcionou boa
parte daqueles que alçaram a primeira parte à condição
de clássico instantâneo. A Noiva continua em sua
busca por vingança, e após ter confrontado e eliminado
Vernita Green (Vivica A. Fox) e O-Ren Ishii (Lucy Liu) na primeira
parte, ela segue em busca de Budd (Michael Madsen), Elle Driver
(Daryl Hannah) e, finalmente, Bill. No entanto, à diferença
do Vol. 1, não há cenas de ação da
magnitude do confronto da Noiva contra os Crazy 88 e O-Ren, e
muito menos aquele banho de sangue todo. Na verdade, o Vol. 2
apresenta apenas uma grande seqüência de luta, entre
a Noiva e Elle Driver. E mesmo assim ela está mais para
vale-tudo do que para artes marciais. Há longos flashbacks,
mostrando o dia fatídico na igreja (este em preto-e-branco),
e o divertido treinamento da Noiva com o sádico mestre
de Kung Fu Pai Mei (Gordon Liu, que no Vol. 1 era o líder
dos Crazy 88), que se mostrará decisivo em pelo menos
duas complicadas encrencas enfrentadas por nossa heroína.
Numa delas a Noiva é enterrada viva por Budd - situação
aparentemente sem saída e magistralmente filmada por Tarantino.
O diretor segue com suas referências a clássicos
das artes marciais e aos westerns spaghetti – Carradine
aparece tocando uma das flautas de bambu que utilizou na série
KUNG FU, e o personagem de Pai Mei era recorrente nos filmes
da “Shaw Bros.”.
A ação do filme desloca-se
da Ásia para o sul dos EUA e México, dando à produção
um sabor de faroeste contemporâneo. No entanto, o diretor
dá uma guinada rumo a um estilo mais próximo ao
dos seus filmes anteriores, e o Vol. 2 passa a sustentar-se mais
em situações irônicas, drama e longos diálogos
pop/filosóficos, do que nas cenas de ação
regadas a sangue. Neste sentido, o confronto final da Noiva (de
quem, afinal, descobrimos o nome real) e Bill é uma espécie
de anticlímax. Quando tudo se encaminhava para um combate
feroz entre os dois, a vingadora descobre que Bill estava vivendo
com a filha dos dois que julgava morta, B.B. (Perla Haney-Jardine),
e toda a estratégia que ela planejara vai por água
abaixo. Inicia-se então um confronto de palavras e sentimentos,
que passa pelo monólogo de Bill sobre o seu personagem
de quadrinhos preferido, Superman. E, ao contrário do
que se poderia esperar, o filme ruma para um final de emoção
e ternura. Mas não imaginem que Tarantino perdeu a mão
e fez o filme descambar para um dramalhão água-com-açúcar.
A Noiva finalmente obtém sua vingança completa,
mas não da maneira que muitos esperavam e desejavam. E
isto, sob determinado ponto de vista, pode ser considerado um
acerto do filme.
KILL
BILL: PARA OUVIR
Complementando
todo o arsenal de referências visuais dos filmes, Tarantino
acentua as homenagens e referências a gêneros como os spaghetti westerns
e os filmes blaxploitation através da música. De um modo geral,
seus filmes são aqueles raros exemplos de produções em que
a seleção musical tem uma importância fundamental, funcionando
tão bem quanto uma trilha incidental original. Segundo o próprio
cineasta, quando ele está filmando, o faz já pensando na música
que será utilizada acompanhando a imagem. Na verdade, Kill Bill é o
primeiro filme de Tarantino que conta com músicas especialmente compostas
para ele, mas chamar as curtas criações de The RZA (Robert Diggs,
do grupo de rap Wu-Tang Clan) de trilha sonora original é um exagero.
Assim, para Kill Bill, Tarantino na maior parte do tempo construiu uma trilha
pinçando, de sua discoteca particular, canções antigas e
temas de outros filmes. E não estamos frente a uma simples coletânea
de canções: as seleções musicais funcionam efetivamente
como um score acompanhando a ação que transcorre na tela, ainda
que, em disco, fique ressaltada a falta de unidade típica da utilização
de elementos das mais diversas origens. Emoldurando sua história de vingança,
Tarantino buscou as correspondências musicais aos gêneros nos quais
ela se inspirou. As referências mais óbvias a seriados na TV são
encontradas em Ironside (a introdução do tema da série estrelada
por Raymond Burr, composto por Quincy Jones), e no tema de THE Green Hornet,
composto por Billy May (e interpretado pelo trompetista Al Hirt) para a série
dos anos 60 que revelou Bruce Lee. Já as referências musicais cinematográficas
são mais variadas. Do cinema japonês Tarantino resgata o poderoso
tema do filme de yakuzas (as máfias japonesas) de Kinji Fukasaku, Battle
Without Honor and Humanity (1998), composto por Tomayasu Hotei e ouvida antes
do inacreditável combate da Noiva com os Crazy 88. A canção "The
Flower of Carnage", interpretada por Meiko Kaji, foi extraída do
filme Lady Snowblood (1973). Representando o spaghetti western, foi incluído
o belo tema composto pelo argentino Luis Bacalov para The Grand Duel, produção
dirigida por Giancarlo Santi em 1972. Já o mestre do gênero, Ennio
Morricone, está presente no volume 1 com o tema "Death Rides a Horse",
que infelizmente foi omitido do CD da trilha sonora. Apesar de não ter
sido composta para nenhum western, a música do flautista Georges Zamfir, "The
Lonely Shepherd", tem semelhanças com a música do gênero,
e é exemplarmente utilizada para retratar o fabricante de espadas Hanzo.
Até mesmo o blaxploitation, gênero já homenageado pelo diretor
em Jackie Brown, está presente na composição "Run Fay
Run", da trilha de Isaac Hayes para o filme estrelado por ele mesmo Tough
Guys, de 1973 (no filme há outra música de Hayes, do filme Truck
Turner, também não incluída no CD). A salada musical continua
com canções pop de épocas variadas - a soturna balada "Bang
Bang (My Baby Shot Me Down)", com Nancy Sinatra no vocal (que virou a assinatura
musical do Vol. 1), "Woo Hoo" do grupo de garotas japonesas The 5.6.7.8's,
e até mesmo a famosa versão "flamenco brega" de "Don´t
Let Me Misunderstood", por Santa Esmeralda, ouvida no duelo entre a Noiva
e O-Ren Ishii. Destaca-se também o resgate que Tarantino fez de uma composição
esquecida de um dos maiores compositores do cinema de todos os tempos, Bernard
Herrmann. Para acompanhar a aparição da assassina interpretada
por Daryl Hannah, Tarantino selecionou a música de Twisted Nerve, filme
de suspense inglês de 1968 para o qual Herrmann compôs a partitura
original. Do mesmo modo que o vilão daquele filme, Hannah assobia o tema
de Herrmann, uma composição que, mesmo sendo curta (pouco menos
de 1:30 min. de duração), apresentando algumas das características
de harmonia e orquestração que fizeram de Herrmann um dos gênios
da música de cinema.
No
aspecto musical, o Vol. 2 mantém o padrão
seguido no filme anterior, porém indiscutivelmente sem o mesmo brilho.
Isto fica bem caracterizado no CD da trilha sonora, que a exemplo do álbum
do Vol. 1, inclui trechos de diálogos do filme – normalmente acho
isso uma idiotice, mas dado o caráter peculiar dos textos de Tarantino,
eles até ajudam a criar um clima adequado à audição
das músicas que se seguem. Escutando este álbum, fica-se com a
impressão que o melhor da seleção musical ficou na trilha
anterior, e que para a segunda ficaram reservadas as "sobras". Esta
impressão não é diminuída pelo rap "Black Mamba" do
The Wu Tang Clan (que não aparece na relação de faixas na
capa do CD), ou ainda "Malagueña Salerosa", tradicional canção
mexicana interpretada pelo grupo Chingon, em gravação produzida
pelo parceiro de Tarantino, Robert Rodriguez. São faixas que poderão
agradar a muitos (no caso do rap, especialmente criada para o filme/álbum),
mas o problema é que desta vez não há aquelas combinações
de imagem e música que, como ocorre várias vezes durante o Vol.
1, resultam geniais. E, separada das imagens, a seleção musical
de Kill Bill Vol. 2 resulta numa interessante, porém aleatória,
coletânea de composições. De um modo geral, esta trilha reflete
a ambientação e ritmo do filme, o que significa trocar os sons
mais fortes e inspirados pela Ásia por outros mais introspectivos ou representativos
do sul dos EUA e do México. O CD inicia com o monólogo de Uma Thurman
sobre a sua vingança, precedendo a canção de Shivaree "Goodnight
Moon" (extraída do álbum de 1999 "I Oughtta Give You
A Shot In the Head for Making Me Live in This Dump"). Ennio Morricone, que
estava ausente do primeiro álbum, faz-se presente no filme e no disco
com três faixas de seus antigos spaghetti westerns – "Il Tramonto", "L’ Arena" e "A
Silhouette of Doom" - porém, nenhuma tem o impacto ou é utilizada
no filme de forma tão memorável como o tema "Death Rides a
Horse", que infelizmente ficou de fora do CD do Vol. 1 (mas pode ser encontrado
na coletânea de Morricone Movie Masterpieces, lançada no Brasil).
O compositor Luis Bacalov retorna no Vol. 2, não com a música de
algum spaghetti western, mas sim com "Summertime Killer", típica
dos filmes policiais dos anos 70. Se desta vez não temos Nancy Sinatra
cantando a melancólica "Bang Bang (My Baby Shot Me Down)", a
trilha do Vol. 2 apresenta "About Her", interpretada por Malcolm McLaren,
que representa o lado mais sentimental que a trama do filme adquire próximo
ao seu final. Dentre todas as faixas do CD, parece-me que esta é a única
capaz de transcender às demais e entrar para a cultura pop/cinematográfica
dos filmes de Tarantino. "The Chase", de Alan Reeves e Phil Steele, é uma
interessante instrumental à la anos 60, porém, por melhor que esta
e outras canções que completam o álbum sejam utilizadas
no filme (Johnny Cash incluso), a trilha sonora de Kill Bill Vol. 2 não
consegue cativar o ouvinte como sua predecessora.
De
qualquer modo, talvez seja um tanto injusto avaliar os dois volumes
de KILL BILL - filme e música - em separado, quase
que de forma estanque como muitos fizeram. No conjunto, revela-se
uma obra coesa que foi a resposta à altura para aqueles
que já consideravam Tarantino como coisa do passado. Ele
realizou um longo filme repleto de drama, ação,
humor e emoção, na maior parte do tempo uma delícia
de se ver e ouvir e que também é, além de
uma declaração de amor ao cinema, sua homenagem à maternidade
de Uma Thurman.
Por Jorge Saldanha
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