13
de setembro de 2004
Passando
a limpo a história da música no cinema mundial,
constata-se que são comuns os casos em que scores (as
partituras ou trilhas originais compostas especialmente para
os filmes) são rejeitados por diretores ou produtores.
Alguns episódios tornaram-se famosos, como o da trilha
de Bernard Herrmann para Cortina Rasgada (1966),
descartada por Hitchcock em favor de um score “mais moderno” de
John Addison (isto inclusive provocou o fim da notável
parceria do grande compositor com o lendário diretor).
Outro caso famoso é o da partitura original de Alex North
para 2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968),
que Stanley Kubrick substituiu por seleções de música
clássica. Agora temos outro caso que, tudo indica, ficará registrado
com destaque nos anais da música do cinema: a rejeição
da trilha sonora original que Gabriel Yared compôs para Tróia (2004).
AS
DUAS TRILHAS DE TRÓIA
O
compositor libanês Gabriel Yared, que ganhou um Oscar
por seu trabalho em O Paciente Inglês (1996), passou mais
de um ano trabalhando em um elaborado e grandioso score para
Tróia. Contudo, algumas semanas antes da estréia
do filme, após uma exibição-teste, o trabalho
do compositor foi rejeitado, uma vez que os produtores decidiram
que ele era muito "antiquado" e que Tróia deveria
ter uma linguagem musical mais afinada com os tempos atuais -
entenda-se, que "tivesse uma trilha sonora da moda" (étnica).
Em face da complicada situação formada - a nova
trilha teria de ser composta, gravada e adicionada ao filme em
poucas semanas, o diretor Wolfgang Petersen teve de recorrer
a alguém com a experiência de trabalhar nestas condições
e, acima de tudo, com a capacidade de criar uma partitura funcional
com a sonoridade exigida, algo na linha dos sons ouvidos em Gladiador (2000) e A
Paixão de Cristo (2003).
James
Horner e sua trilha para Tróia - Entra em cena nosso
conhecido James Horner, que já trabalhara com Petersen
em Mar em Fúria (2000). De habilidade e recursos indiscutíveis,
Horner encarou a missão e compôs 120 minutos de
música em 13 dias, levando outros 12 para gravá-la
com uma orquestra de 118 instrumentos (entre eles, 5 pianos),
regida por ele mesmo, e coral. O resultado pode ser conferido
no filme e nos 75 minutos de música contidos no CD lançado
pela Warner, inclusive no Brasil. Horner, como seria de esperar,
entregou uma trilha sonora funcional e que contém os elementos
que lhe foram exigidos - instrumentação e vocais étnicos,
com uma solista à la Lisa Gerrard, e orquestração
contemporânea. Digam o que disserem, poucos profissionais
do ramo, hoje, teriam condições de concluir uma
trilha original de qualidade mínima no curto prazo que
ele teve. E, neste aspecto, o score de Horner para Tróia,
principalmente como ouvido no filme, pode ser considerado um
trabalho bem sucedido. Já em disco, ficam mais expostos
os conhecidos "hornerismos", que tem origem na insistência
do compositor em reaproveitar porções de seus trabalhos
anteriores (e, não raro, de outros compositores). Neste
aspecto, em um primeiro momento o que mais é visível
(melhor dizendo, audível), é aquele motivo de quatro
notas que Horner tomou emprestado de Prokofief, celebrizado em
Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan como o tema do vilão.
Ao longo dos anos o compositor vem repetindo este tema para representar
o perigo, com pouquíssimas variações, em
uma série de filmes de temáticas distintas, como
Willow, A Máscara do Zorro e Círculo de Fogo.
Em
Tróia ele é utilizado para representar o exército
grego e, forçoso é reconhecer, mais uma vez de
forma eficaz. No álbum este motivo é ouvido primeiramente
em “Achilles Leads The Myrmidons”, e posteriormente
em trechos de música de batalha. “Briseis and Achilles” introduz
no álbum o tema de amor do filme, que não é dos
mais inspirados de Horner. O que é de se lamentar, já que
o compositor, em sua carreira, compôs alguns love themes
belíssimos. Para completar, este tema guarda uma grande
semelhança com o tema de Stargate, de David Arnold...
Se de um modo geral os temas que Horner criou para Tróia
não chegam a empolgar, dentre eles destaca-se o tema composto
para o guerreiro Aquiles. Nele, a música consegue transmitir
muito bem o heroísmo do personagem, especialmente em “Achilles
Leads The Myrmidons”, faixa de ação com uma ótima
escrita para cordas e metais. O tema de Aquiles retorna em outros
momentos, como em “The Trojans Attack” e “Through
The Fires, Achilles... And Immortality”, valorizando tais
composições. Outro momento atrativo da trilha chega
em “Hector's Death”, que acompanha o confronto de
Heitor com Aquiles. A faixa inicia e transcorre por um bom tempo
somente com percussão, até que o coral étnico
assinala a queda do guerreiro troiano. Em seu conjunto a composição
possui um tom tribal bem interessante. Além da grande
orquestra e coral, como já citei ao início temos
os vocais femininos da solista Tanja Tzarovska, que também
participou do score rejeitado de Yared. Sua voz é ouvida
já na faixa inicial, "3200 Years Ago", e retorna
em vários momentos do score, como "The Temple of
Poseidon". Sem surpresa, os solos de Tzarovska lembram muito
os de Lisa Gerrard em Gladiador, e têm grande relevo na
música. Também o coral búlgaro utilizado
por Horner é o mesmo que Yared empregou no seu score.
Encerra
a trilha a obrigatória canção ao
final, uma versão pop vocal do tema de amor interpretada
por Tzarovska e Josh Groban. Em suma, a trilha de James Horner
para Tróia é um eficiente trabalho que poderia
ser melhor, se o compositor tivesse um pouco mais de tempo para
entregar um trabalho mais elaborado e, preferencialmente, sem
a sua "marca registrada" de quatro notas. Já o
caso da partitura de Yared é bem diferente, apesar de
que, comparando-se as duas, fica óbvio que Horner utilizou
alguns dos conceitos que o compositor libanês empregou
no trabalho rejeitado. É o que veremos a seguir.
O
score rejeitado de Gabriel Yared - Após ter sido dispensado
pelo diretor Wolfgang Petersen, Yared chegou a disponibilizar
em seu site oficial (http://www.gabrielyared.com/), por algum
tempo, clipes de seu score rejeitado. Não conhecia nenhum
trabalho anterior de Yared com proporções épicas,
portanto foi com surpresa que constatei, pelos trechos disponibilizados
ali, de que tudo indicava tratar-se de uma obra com estas características.
Posteriormente, tendo recebido o CD promocional de Yared utilizado
para esta análise, tive certeza de que os adjetivos “excessivo”, “grande
demais” e “antiquado”, utilizados para justificar
a não-utilização desta partitura, tinham
certo fundamento. Porque, recentemente, apenas os grandes scores
orquestrais de Howard Shore para a trilogia O Senhor
dos Anéis se aproximam deste trabalho de Yared em termos de grandiosidade
e, mesmo, de complexidade de estrutura e utilização
conjugada de temas ou motivos musicais. Tróia de Gabriel
Yared é um score épico, magnífico, cem por
cento acústico e, sim, antiquado - no sentido de que segue
a tradição dos grandes trabalhos do gênero
produzidos por mestres como Miklos Rozsa, Alfred Newman e Bernard
Herrmann. Para a sua gravação em Londres foi utilizada
uma grande orquestra e um coral búlgaro que, como mencionado
anteriormente, foi também empregado por James Horner.
As refinadas orquestrações ficaram a cargo de Jeff
Atmajian, John Bell e Stephan Moucha.
As
qualidades inerentes da música, todas típicas das grandes partituras
orquestrais do cinema, carregadas de força e emoção,
justificam a impressão de que ela seja “antiquada” -
o que não deixa de ser irônico por tratar-se de
um filme que narra acontecimentos ocorridos há 3.200 anos.
E é bom que se frise, isso passa a ser defeito somente
a partir do momento em que o cineasta resolve que quer no filme
uma música mais contemporânea, que possa ser melhor
assimilada pelo público de hoje. De qualquer sorte nota-se
que, provavelmente por pressão de Petersen ou de alguma
outra pessoa com poder decisório na produção,
Yared buscou incluir alguns elementos da música “étnica” comum
em filmes do gênero moderno, ou seja, as vocalizações
que lembram sonoridades do Oriente Médio, e instrumentos
típicos. E, para remeter à trilha de Gladiador,
para certas passagens o compositor, a exemplo de Hans Zimmer,
usou harmonias de “Mars, Bringer of War”, da sinfonia “The
Planets”, de Holst. Porém estes elementos estão
restritos a poucos momentos da obra, caracterizada principalmente
pela força da orquestra, do coral e dos fortes temas sobre
os quais se baseia. Em destaque temos o heróico tema de
Aquiles, apresentado em “Achilles & Boagrius”,
bem diferente do de Horner mas que, de modo análogo, é uma
das forças que movem o score; os belos temas de amor ouvidos
em “Paris and Helen” e “Achilles and Briseis”;
e o poderoso tema dos gregos, introduzido com força por
tambores de guerra, coral, ostinato de cordas e metais massivos
já em “Approaching Greeks”, a primeira faixa
do CD promo. Para as cenas de batalha Yared compôs peças
rítmicas, percussivas e com forte uso dos metais, que
além de não fazerem feio frente às equivalentes
de Horner, chegam a superá-las. Faixas desta categoria,
como “D-Day Battle”, “Battle of the Arrows” e
a longa “The Sacking of Troy” definitivamente merecem
nossa atenção. Mas agora passamos a dar maior atenção à área
onde os trabalhos de Yared e Horner apresentam similaridades – para
começar, o uso do London Bulgarian Choir e da solista
macedônia Tanja Tzarovska.
Pelo
jeito os produtores gostaram destes elementos específicos da trilha de Yared, e solicitaram
a Horner que os reutilizasse nas gravações feitas
em Los Angeles. Contudo, o norte-americano fez deles uso de uma
forma mais “palatável” e menos crua que Yared.
Ouça de Yared, por exemplo, “Moaning Women” e “Hector’s
Funeral”, onde Tanja Tzarovska e o coro feminino literalmente
lamentam e choram pela perda de vidas. Em outras faixas, o coral
masculino canta em tom baixo e grave, dando ares sombrios à música.
Já “Achilles & Hector Fight” é outro
caso em que Horner utilizou conceitos de Yared. É uma
faixa em que não há um tema propriamente dito: é,
na definição do próprio Yared, uma “Dança
da Morte” na maior parte interpretada na percussão,
acompanhando o combate de Aquiles e Heitor. Quando este é ferido,
finalmente ouvimos o coral e Tzarovska. E, pelo menos ao meu
juízo, nada mais há em comum no trabalho dos dois
compositores. O score aproxima-se do final com “The Sacking
of Troy”, onde novamente ouvimos o ostinato do tema dos
gregos, e “Achilles Death”. Estas duas faixas sozinhas
duram 16 minutos, que se iniciam em ritmo de ação
para, na última, termos uma conclusão eminentemente
emocional.
O álbum se encerra com “End Title Song”,
canção que de pop não tem nada. É uma
espécie de versão melancólica e muito bonita
do tema de amor de Helena e Paris, com a voz de Tzarovska (que
criou as letras em macedônio) sobre um acompanhamento suave.
Yared não chegou a gravar toda a partitura, mas mesmo
assim deixou registradas mais de duas horas de música,
das quais colocou 77 minutos no CD promo. Algumas faixas não
terminaram de ser mixadas, e a canção final possui
qualidade de áudio (mono) irregular. Mas nada disso enfraquece
a música que ouvimos. De fato, posso concluir ser até possível
que, em determinados momentos, a criação de Yared
soasse mesmo intrusiva e excessiva no filme; contudo, a rejeição
completa deste magnífico score , um dos mais grandiosos
e elaborados compostos em anos recentes, foi um erro lamentável,
já que não tenho dúvidas que Tróia seria um filme melhor se tivesse a acompanhá-lo a antiquada – e
excelente – partitura de Gabriel Yared. No momento não
há previsão de que, em algum momento do futuro,
ela seja disponibilizada de forma ampla ao público. Contudo,
há uma petição online para seu lançamento
em CD, ou para que ao menos seja incluída no filme em
uma futura edição especial em DVD, como faixa de áudio
alternativa. Para assinar a petição, vá até http://www.petitiononline.com/gyared/petition.html.
Até a próxima! Por Jorge Saldanha
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