Um Cruzamento Cinematográfico

Pode-se dizer que o que acontece na trama de Stromboli traz um pouco do que o próprio casal Roberto-Ingrid viveria naqueles anos

19/04/2018 00:07 Por Eron Duarte Fagundes
Um Cruzamento Cinematográfico

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Stromboli, terra de Deus (Stromboli, terra di Dio; 1949) volta aos cinemas brasileiros quase setenta anos depois que agitou o mundo do cinema, com esta mistura duma estrela de Hollywood com um artista intelectual europeu, para que o espectador de hoje possa aquilatar as grandezas e as adaptações de ambos os universos aparentemente díspares mas que convulsamente se aproximam. A sueca Ingrid Bergman é a intérprete que quis experimentar a difícil convivência cênica com pescadores italianos longínquos. O cineasta italiano Roberto Rossellini —provavelmente o mais renascentista dos homens produzidos pelo cinema— inseriu a figura que o encantava e contrastava (a bela de Hollywood) para encontrar caminhos diferentes em sua trajetória neorrealista; diferentes porém sem perder o âmago.

Sim: as filmagens e o filme que chegou às telas no fim dos anos 40 é um cruzamento cinematográfico essencial, uma união primeiro cinematográfica e depois humana, ou ao mesmo tempo cinematográfica e humana, entre Ingrid e Roberto. Nunca depois a interpretação de Ingrid foi exatamente a mesma: nem o cinema de Roberto. Houve um antes, porém. Ingrid, nos Estados Unidos, viu as obras-primas neorrealistas de Rossellini e se apaixonou pelo artista antes de conhecer o homem. Vendo estas obras, ela escreveu a Rossellini oferecendo-se para trabalhar com ele; pensava ela que a inserção duma estrela no elenco daqueles filmes realistas traria naturalmente o sucesso de público. Dizia ainda a carta de Ingrid a Roberto que as únicas palavras que ela sabia em italiano eram: “Ti amo.” Ingrid partiu para a Itália, para filmar na desolada ilha de Stromboli. O que aconteceu durante as filmagens foi um caso de amor adúltero que escandalizou o mundo e o mundo do cinema; voltando grávida de Stromboli, Ingrid abandonou seu casamento americano e foi viver com Roberto, sendo execrada pelo moralismo que imperava na sociedade americana e nos meios cinematográficos de então.

O resultado é um filme soberbo do grande cineasta italiano. Ele em fotograma algum vai impressionar-se com o senso de estrela de Ingrid. Ele a desglamuriza sem lhe retirar aquela luz de intérprete que faz dela uma namorada da câmara de filmar e da montagem. Agora, diferentemente do que ocorria em seus filmes americanos (mesmo, do que ocorreria em suas interpretações americanas pós-rosselinianas), a luz de Ingrid não domina a cena: está na cena simplesmente, é tão fundamental quanto o gesto dum pescador.

Pode-se dizer que o que acontece na trama de Stromboli traz um pouco do que o próprio casal Roberto-Ingrid viveria naqueles anos. A figura um pouco mefistofélica, um pouco mística de Ingrid põe em xeque tudo o que rodeia o filme, por fora, antes, durante e após as filmagens. A personagem de Ingrid é uma lituana que, fracassando sua tentativa de visto para a Argentina, visando a fugir dum campo de concentração, se casa com um ex-soldado, o pescador Antonio; ela acaba tendo de viver na isolada ilha de Stromboli, e se apavora, mesmo grávida tenta fugir entre as lavas dum vulcão que pouco antes entrara em erupção. Desenvolta, vinda duma região menos afeita aos preceitos religiosos antigos, ela é mal falada entre o povo local. A questão moral enfrentada pela personagem seria parecida com aquela que a própria Ingrid depararia no curso da feitura e exibição de Stromboli.

Dois procedimentos são fundamentais para se compreender esta obra-prima. O rigor semidocumental com que ele encena tudo, fazendo dos pescadores e da intrusa peças de uma coreografia fílmica que leva ao êxtase. E também o catolicismo conservador dum intelectual como Rossellini; é talvez este lado católico do realizador que o difere de um de seus discípulos, o também italiano Michelangelo Antonioni; ambos são filósofos existencialistas em algum sentido, mas a religiosidade italiana de Rossellini lhe permite uma curiosa aproximação na direção dos humildes que em Antonioni é muitas vezes problemática. É pela reflexão religiosa que Rossellini traça o caminho de sua protagonista: descrente e um pouco libertina no início, na cena final seu olhar para o vulcão é o de quem vislumbrou a divindade, e suas exclamações do nome de Deus o confirmam.

O catolicismo traz novamente para a cena rosselliniana um padre, que em seus conselhos à mulher murmurada pelo povo confronta esta mulher em suas descrenças. Há uma breve cena de uma missa. A câmara entra com o casal protagonista na igreja, fica ali junto dos fiéis e quanto ao padre, só o espia à distância, de costas (o sacerdote é visto no fundo do plano, não está falando). De cenas de missas no cinema. Luz de inverno (1962), do sueco Ingmar Bergman, faz o contrário: a câmara concentra-se na fala do pastor. Minha noite com ela (1969), do francês Eric Rohmer, mantém a câmara no meio das pessoas, como no filme de Rossellini; mas o discurso do padre chega a aparecer como segundo foco.

Curiosamente, pouco antes, outro gênio do cinema italiano, Luchino Visconti, filmara pescadores em A terra treme (1947). Como em Stromboli, a narrativa de Visconti tem uma plasticidade arrebatadora. O que afasta um filme do outro é que em Rossellini a estética tem um pulso sanguíneo, enquanto Visconti faz seu cérebro de diretor engessar o universo que retrata.

Sabemos todos que Rossellini não é um cineasta do universo comercial do cinema. Ingrid não o transformou tanto assim. Mas seria bom que todos os filmes de Rossellini pudessem ter algumas exibições nas salas habituais de cinema. Como acontece com Stromboli agora.

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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