O Cenrio e o Guarda-Roupa como Personagens Subsidirias

Para analisar a obra cinematogrfica do americano James Ivory, mister despir-se de alguns conceitos sovados e partir com olhos virgens para a reflexo crtica

10/12/2018 14:56 Por Eron Duarte Fagundes
O Cenário e o Guarda-Roupa como Personagens Subsidiárias

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Pré-escrito: O texto que segue, tratando do filme Retorno a Howards End, de James Ivory, foi escrito em 1993, numa das minhas revisões da obra em VHS. Faço aqui a advertência ao leitor que fez Machado de Assis na introdução de seu romance Helena (1976), quando o relançou décadas mais tarde de sua composição: “Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.” O texto que segue vai como foi produzido em seu tempo: com todos os seus percalços.

 

O Cenário e o Guarda-Roupa como Personagens Subsidiárias

 

Para analisar a obra cinematográfica do americano James Ivory, é mister despir-se de alguns conceitos sovados e partir com olhos virgens para a reflexão crítica (não a escrita, mas a que todo espectador faz, a seu modo). Adotar uma posição primitiva e desconhecida como forma de enfrentar o que o cineasta nos propõe. Esquecer que vivemos no fim do século XX e temos inevitavelmente uma consciência pós-marxista. Pensar em nossas leituras da adolescência, quando os autores do Romantismo ainda nos diziam alguma coisa. Olvidar o fato de Ivory ser americano; ou melhor, um americano de nossos dias, cabeça dominada pelo feérico fácil do cinema de Hollywood; para Ivory, ser americano é ser antes de tudo anglo-saxão, daí por que ele busca em escritores quase ancestrais para o paladar moderno (Henry James, Edward Morgan Forster) motivações para fazer filmes dentro de um temperamento equivocadamente chamado apenas de britânico, mas que é antes de tudo saxônico (pré-britânico, bárbaro mesmo se excluirmos os refinamentos estilísticos adquiridos culturalmente).

É da ficção de Forster que Ivory retira Retorno a Howards End (Howards End; 1991), uma nova incursão por personagens e clima estético estranhos e talvez pouco usuais para o pensamento contemporâneo. São diversos os planos em que se movimenta a narrativa de Ivory. O plano mais evidente é o literário, aquele cuja base sintática é o sempre desorientador texto de Forster. A história das irmãs Schlegel (inglesas de origem germânica) é capturada pelo roteiro de Ivory com sensibilidade e fidelidade; o trecho mais característico da capacidade de sintetizar em imagens cinematográficas uma parte complexa do romance é o do sarau musical. No livro, estas são as páginas mais brilhantes, mais genuinamente forsterianas. No filme, revelam alto poder de síntese e alternativas de linguagem. Ao discurso indireto livre do romance, onde Forster com muita magia caracteriza o interior vulcânico de suas criaturas mais específicas (Helen, por exemplo), vem substituir um diálogo discursivo sobre música e significado, onde por palavras, gestos dos atores e atmosfera sonora e visual Ivory capta um pouco do que estava na página escrita —inclusive o texto de Forster é recriado fielmente pelos atores; o texto no livro é discurso indireto (instância em que o pensamento narrador se confunde com o pensamento da personagem), no filme é metamorfoseado em discurso direto, fala da personagem.

Os outros planos de Retorno a Howards End são pictóricos. Não na superfície, no brilho fútil. A pintura como base da sintaxe do filme. Há personagens criadas pelos diálogos e pelas figuras dos atores. Mas cada personagem-ator tem outros dois planos que figuram como personagens subsidiárias. (Para entender esta questão do subsídio narrativo, devemos pensar na linguagem da informática; quando organizamos e reorganizamos bancos de dados; há um banco de dados central, dentro da extensão principal do programa, e arquivos subsidiários, por exemplo, de índices, de comandos do programa, com suas extensões características). Assim é com a personagem neste filme de Ivory. Há em cada personagem um arquivo básico, informado pelo ator e pelo texto. E ao menos dois arquivos subsidiários: um ditado pelos cenários por onde transita o arquivo básico, outro criado a partir dos figurinos de época com os quais este arquivo básico é colorido. Não sei se há aí um conceito metafórico pedante e inadequado, unindo coisas distantes como os signos da informática embrionária e a linguagem cinematográfica, para explicar a narrativa de Ivory; sei tão-somente que se trata dum cinema que me deixa perplexo. É novo e arcaico ao mesmo tempo; é original e cinematográfico, embora nunca desdenhe da bengala de outras artes para dar seus passos. É um cinema que pensa como a romancista oitocentista Jane Austen, mas que se estrutura na complexidade estilística dos modernos.

Vale a pena arriscar teorias para apaixonar o pensamento num filme de James Ivory.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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