A Estranha Iluminacao de uma Pintura

Tem algo de transcendente as reflexoes do narrador sobre a arte pictorica: mas o texto eh nada pictorico

06/07/2020 14:12 Por Eron Duarte Fagundes
A Estranha Iluminacao de uma Pintura

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A escritora norte-americana Donna Tartt parte duma pintura e dum pintor pouco conhecidos dos aficionados para traçar uma visão trágica e desesperada do humano em seu romance O pintassilgo (The goldfinch; 2014). O pintor é o holandês Carl Fabritius, equiparado a outros holandeses famosos como Rembrandt e Vermeer, e a pintura é seu quadro “O pintassilgo”, desaparecido durante um atentado terrorista num museu de Nova Iorque. É na confluência desta cena violenta que a autora põe em marcha sua ficção; Theo Decker, o protagonista da história da romancista (a narrativa é na primeira pessoa, contada por Theo), estava no museu com sua mãe; a mãe morreu no atentado, Theo sobreviveu. É desta sobrevivência que fala Tartt: do feitiço das lembranças maternas, do feitiço da pintura como arte e como iluminação da vida das pessoas por aqui.

Têm algo de transcendente as reflexões do narrador sobre a arte pictórica: mas o texto é nada pictórico; há lá pelo fim uma evocação de um trecho de Marcel Proust como modelo de relacionar um quadro às vidas das personagens, e Tartt segue um pouco este caminho descritivo, mas sem a densidade plástica do verbo proustiano. “Até Proust —há um trecho famoso em que Odette abre a porta com um resfriado, ela está mal-humorada, seu cabelo está solto e desarrumado, sua pele está manchada, e Swann, que até aquele momento nunca tinha ligado muito para ela, se apaixona, porque ela se parece com uma garota de Botticelli de um afresco ligeiramente deteriorado” No texto de Proust o narrador diz: “Une seconde visite qu’il lui fit eut plus d’importance peut-être.”. O trecho a que se refere a paráfrase de Tartt é este: a da segunda visita de Swann a Odette, e, aduz o narrador, mais importante que a primeira, provavelmente. Sim, ela aparece a ele um pouco adoentada. “Elle était un peu soufrante”. E, sim, ela não está com o humor para a visita  e os circunlóquios de Swann: “ses grands yeux, si fatigués et maussades”. E então a iluminação pela evocação pictórica, a partir da qual “(elle, Odette) devait exercer sur Swann une influence durable, qu’il trouva ce moment-là dans la ressemblance d’Odette avec Zéphora de ce Sandro di Mariano auquel on donne plus volontiers son surnom populaire de Botticelli depuis que celui-ci évoque au lieu l’oeuvre véritable du peintre l’idée banale et fausse qui s’en est vulgarisé.” (o que se diz: na cabeça de Swann, um homem de salões de arte, a semelhança de Odette com a Zéphora de Botticelli mudou sua perspectiva, dali para a frente, em relação àquela mulher mundana de Paris). Tartt está mais próxima do niilismo duma criatura dum romance de Dostoievski, citado explicitamente, em outra paráfrase crítica, do romance O idiota. E põe em cena uma personagem russa, Boris, amigo de Theo, que faz descarrilar nas páginas o azedume apocalíptico do que são mesmo os homens. Passa um pouco longe da poesia impressionista e atmosférica de Proust, a despeito da inspiração inicial da trama.

Tartt navega por muitas referências culturais, pintores, escritores, filmes. Ela tenta algumas densidades. “Boris ainda estava falando, e eu percebi que, se não quisesse me perder para sempre naquele mundo granuloso de Nosferatu, sombras aguçadas e acromatismo, era importante ouvi-lo e não ficar tão obcecado com a textura artificial das coisas.” Sem o primado da demência espontânea das situações dos que a antecederam (Dostoievski à frente), Tartt amiúde acerca-se desta “textura artificial” (onde a profundidade topa sua própria superficialidade) e resvala em palcos bem triviais. “E eu acrescento meu próprio amor à história das pessoas  que amaram coisas belas, e cuidaram delas, e as tiraram do fogo e as procuraram quando estavam perdidas, e tentaram preservá-las e salvá-las enquanto as passavam de mão em mão, cantando de forma brilhante pelos destroços do tempo, para a própria geração de amantes, e a próxima.” Ainda assim, um romance bastante acima da média nos dias correntes.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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