O Movimento Que Vai a Interioridade da Cena

Bela Tarr, com intensidade criativa, entrega ao observador perplexo e mudo como diante de um quadro da Renascenca

11/09/2020 14:08 Por Eron Duarte Fagundes
O Movimento Que Vai a Interioridade da Cena

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

As duas primeiras sequências de O homem de Londres (A Londoni Férfi/The man from London; 2007), filme do húngaro Béla Tarr extraído duma história do ficcionista belga Georges Simenon, parecem cópias ou reiterações dos movimentos uma da outra. A câmara observa um navio numa plataforma marítima e, diante do navio, um trem num caminho de ferro; fixa, a câmara vê as pessoas saírem do navio e dirigirem-se ao trem, surge uma relação estranha e incógnita entre o cais e a estação férrea, há quase uma abstração de espaço, tempo e trama nas formas de linguagem destas cenas. Quando todos os passageiros fizeram sua baldeação navio-trem, parece que a câmara faz um movimento para atrás e então a perspectiva deste olho-cinema revela ao espectador onde ela, a câmara, estava, para ter a panorâmica das coisas, a câmara fora situada dentro dum prédio da plataforma, espiando tudo em seu silêncio um pouco hermético; a fixidez dá lugar a um lento movimento lateral da câmara, este movimento se dá por trás das vidraças brancas e das divisórias escuras, até que, dando no pátio, a câmara acompanha o caminhar dum homem, sisudo e sombrio, rumo do interior da plataforma, que é onde a câmara novamente compõe um plano fixo do homem e daquele interior mal definido. Esta sequência que abre o filme é reposta, plano a plano ou quase, pouco depois e vai surgir pelo menos mais uma vez ao longo desta narrativa tensamente plástica em preto-e-branco (a fotografia de Fred Kelenem é extremamente trabalhada).

Béla Tarr, o realizador de Maldição (1987) e O cavalo de Turim (2011), vale-se por acaso do texto de Simenon, que, diz a história, teve outras duas versões cinematográficas nos anos 40. Tarr não tem relações nenhumas com as convenções das transposições da literatura para o cinema. E seu cinema não se interessa pelo coeficiente episódico singelo e preciso das narrativas de Simenon. Entre a sinuosa simplicidade da escrita do belga e as vertigens a que se entrega o húngaro, o abismo estético instala-se. Simenon, no filme O homem de Londres, é o esqueleto: a alma está em outra parte, mais além, que não vemos, como acontece nos movimentos iniciais do filme, todas aquelas coisas que se passam diante dos olhos do espectador que não sabe nada das personagens e das situações, quase trinta minutos sem nenhum diálogo audível, só a câmara e dentro dela as criaturas de cá para lá, um movimento longo, um corte breve, como interpretar estas objetivas obscuridades cênicas.

Os diálogos, em sua maioria em francês (há alguns em inglês), são breves, truncados, fazem evoluir aos tropeços a história de Maloin, às turras com sua esposa e sua filha que trabalha de faxineira para uma patroa autoritária e áspera. O enredo policial buscado em Simenon, com eventos de roubo e morte, é somente um detalhe longínquo neste universo de puro delírio visual que, mais uma vez, Béla Tarr, com intensidade criativa, entrega ao observador perplexo e mudo como diante de um quadro da Renascença.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha
Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro