O Universo do Carcere por Camilo

Camilo Castelo Branco escreveu suas memorias prisionais. N?o foi o unico

18/09/2020 14:23 Por Eron Duarte Fagundes
O Universo do Carcere por Camilo

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Camilo Castelo Branco escreveu suas memórias prisionais. Não foi o único: o russo Fiódor M. Dostoiveski o fez no próprio coração do século XIX, denominando o lugar onde amontoam criminosos de “casa dos mortos”; também o fez, à sombra das perambulações fascistas no interior do século XX, o brasileiro Graciliano Ramos. Os três (Camilo, Dostoievski, Graciliano) foram ficcionistas notáveis, e emprestaram a suas memórias a habilidade de construção haurida em suas experiências na ficção. A prisão de Camilo se deu por amor, não por motivos políticos, todavia. Camilo amou Ana Plácido. Sim, o amor não é crime, mas Ana era casada e, naqueles anos remotos, adultério dava cadeia mesmo. Nos dias de cárcere Camilo conviveu com prisioneiros variados, que lhe trouxeram suas histórias, histórias que lhe deram material para a composição de Memórias do cárcere (1862), título que muito tempo depois lhe chuparia Graciliano para um relato prisional que tinha fundo político forte porém se estruturava da mesma maneira que o texto de Camilo, o ponto de humanidade encontrado pelo ficcionista nas histórias que colhera. Memórias do cárcere, o livro de Camilo, talvez mais que o Memórias do cárcere (1953), de Graciliano, se afeiçoa a uma série de contos que se desgarram entre si; no entanto têm uma unidade por um carinho do autor para com suas personagens evidenciadas na linguagem de sintaxe densa e no entanto sentimental em que o verbo de Camilo habitualmente mergulhava, e que é mesmo o seu fascínio como prosador de nossa língua. O universo de Graciliano era outro e ele procurou, em suas memórias de prisão, fazer conexões mais evidentes entre cada evocação.

As péssimas condições prisionais no século XIX são testemunhadas pela finura e pela sensibilidade de um romancista de primeira neste Memórias do cárcere de Camilo, cuido mesmo que o pesquisador francês Michel Foucault teria em Camilo material para suas teses e estudos se pudesse interessar-se pela literatura portuguesa. É, em cada frase, em cada curva recapturada e elaborada pela narrativa, fascinante acompanhar o trajeto da pena de Camilo por mais este cenário de extraordinária humanidade que ele nos descortina. Anota Camilo: “Nos últimos meses que precederam a minha apresentação na cadeia, experimentei o que é esterilidade, paralisia e ceguidão intelectual.” Talvez o cárcere camiliano, a despeito da realidade primeira (os companheiros de cadeia) e de sua veracidade (um relato autêntico), seja também um signo da própria vida na sociedade portuguesa da época; não são estes impasses que se experimentam diante de certas situações, “esterilidade, paralisia e ceguidão intelectual”? Nos cárceres pode que as sociedades e seus dilemas sejam somente exacerbados. O sentimento de impotência do indivíduo diante das impossibilidades e hipocrisia faz tudo soçobrar mais ainda.

Uma das visitas ao cárcere nos dias de Camilo preso foi o do rei D. Pedro V. Ao ver as condições deprimentes em que viviam os presidiários, diz Sua Majestade: “Isto precisa ser completamente arrasado.” A oração encontra-se na abertura do capítulo XXXII, depois adiante no mesmo capítulo as palavras são explicitadas e contextualizadas, evocando Camilo a oração de abertura daquele trecho de seu livro. “O rei apeara inopinadamente à porta da cadeia.” E, numa outra visita, ao deixar a cadeia, o rei, impotente como todo indivíduo, exclama: “—Sempre a mesma miséria!” Dele diz Camilo: “O senhor D. Pedro V era um anjo: não sei dar-lhe outro nome.” Mas, no entanto, sempre a mesma miséria. Em Memórias do cárcere —ora sonhador, ora sarcástico, mas sempre criativo em língua e abordagem— Camilo está ao lado dos fracassados anônimos; seu olhar para o rei é condolente, mas está desconfiado. O que ele parece descrever nas ações e especialmente nas frases expelidas pelo rei, é uma relação de estranheza entre as classes sociais: algo duradouro até nossos dias. Na cena final, surge um berro camiliano ainda: “Tanto bradar contra a pena de morte!” Seduz pensar: que veria Camilo hoje? E, para lembrar aqui, Camilo se suicidou na velhice, em sua casa, quando seu oftalmologista lhe disse que talvez ficasse cego para o resto da vida: ler, escrever foi a vida de Camilo; que lhe sobraria dali para a frente sem a visão? Sobrou-nos, a nós, seus leitores, a admiração de um dos mais exuberantes textos em língua portuguesa.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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