O Cinema Embalado de McBride

A Forca do Amor mantem algumas situacoes centrais de Acossado

27/11/2020 13:58 Por Eron Duarte Fagundes
O Cinema Embalado de McBride

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A primeira vez que se pôde ver A força do amor (Breathless; 1983), filme dirigido pelo norte-americano Jim McBride, aqui em Porto Alegre, foi num ciclo denominado “Novas Vozes do Cinema Americano”, que se deu no Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, cuja programação de cinema na época se devia a um indivíduo que é hoje um mito histórico, Romeu Grimaldi. Neste mesmo ciclo se pôde conhecer Baby it’s you (1983), de John Sayles, um cineasta bastante mais rigoroso, em sua personalidade fílmica e inovações, que o faceiro McBride. Algum tempo depois de ser deparado por circunspectos cinéfilos na pequena sala alternativa do Museu, A força do amor, que fora conhecido por alguns poucos em sua versão exclusivamente inglesa no Museu, Breathless, chegou aos cinemas comerciais estourando e conquistou os espectadores cativos. Desde o momento em que se viu no Museu, e depois nas salas habituais, em 1984, A força do amor constrangia por facilidades excessivas visando a fazer concessões que facilitavam sua vida comercial mas abastardavam sua proposta estética, que era refazer os conceitos e as inquietações de Acossado (1960), de Jean-Luc Godard, no cinema e na sociedade americanos dos anos 80. Todavia, algumas cabeças importantes da comunidade cinematográfica porto-alegrense se deixaram arrebatar pela narrativa delirantemente popular do realizador americano.

Lembro que Maria Lúcia Fróes, jornalista, editora da revista Moviola (um dos primeiros movimentos deste comentarista nesta onda de escritor bisbilhoteiro cinematográfico) e também diretora do Clube de Cinema de Porto Alegre, dedicou matéria de página dupla, longo e derramado texto, ao filme de McBride. (Depois daqueles dourados anos 80, nunca mais deparei com Maria Lúcia, assim como com tantas outras personagens daqueles mesmos cenários, que ficaram como um quadro perdido no tempo, a década de 80 do século passado; faz muitos anos alguém me falou que Maria Lúcia andava pela Hungria; hoje, já não sei; mas ela é uma referência de minha memória cinematográfica, pela notável importância que teve em certa quadra no meio da cinefilia da cidade.). Maria Lúcia encantara-se com o filme; e seu texto exalava, em êxtase, este encantamento: naqueles anos dialéticos, deixei-me atrair por seu texto um pouco como um rato numa ratoeira: não ter afinidades com certos filmes e mergulhar em certas meditações textuais que serviam de contraponto a minhas afinidades era um exercício a que me entregava amiúde.

Ao longo dos anos gosto de rever filmes, de que tenha gostado ou detestado: os anos nos mudam, com certeza. Aproveito, pois, a internet, que, no caso do cinema, se transforma numa grande cinemateca virtual. E lá fui à revisão de A força do amor.

Não há diferença substancial entre minhas percepções dos anos 80 e aquelas que agora me chegam, relativamente a este filme. A força do amor é a versão pasteurizada de Acossado. O modelo é o cinema e um certo sentimento da década de 80. Eu como espectador não deixo de ser, em boa parte, fruto deste cinema e deste sentimento. Nasci um pouco desta nossa maneira superficial de ver cinema. Nossa superficialidade (a minha, a de Maria Lúcia Fróes, a de tanta gente que habitou aqueles anos) está inteira no processo narrativo embalado e romântico que McBride trouxe então como novidade e era apenas mais vistoso e sensorial que alguns pares que não fizeram tanto sucesso. Identificar-se com um processo, no meu caso, não é aprová-lo: há um lado de mim que mantém aquela sisudez e incômodo da primeira visão, em 84, no Museu, e que depois se chocou com os delírios verbais fáceis de  Maria Lúcia nas páginas do jornal.

Basicamente, A força do amor mantém algumas situações centrais de Acossado. Inverte a nacionalidade do casal: aqui ele é americano e ela é francesa. Ele rouba um carro no início e no caminho acaba matando um policial. McBride mantém a citação a uma frase do escritor americano William Faulkner, que havia no filme de Godard, mas sublinha e mais enfatiza o gosto mais fácil da personagem masculina pelos quadrinhos, especialmente a personagem do Surfista Prateado. A trama amorosa (distanciada em Godard) traz, na ótica de McBride, elementos de melodrama e algumas tensões eróticas que se valem do estrelismo então em alta de Richard Gere e da beleza cativante da francesa Valérie Kapirsky. (A cena do sexo no chuveiro foi a que mais nos erotizou em seu tempo; e ainda tem este caldo trivial mas funcional). Richard Gere, aproveitando a faixa sonora pop da realização, está aqui mais para John Travolta (um modismo de então) que para Jean-Paul Belmondo. E o final dançante de Gere, ao ser encontrado pelos policiais nas ruas mexicanas, aponta para as opções mais simplificadoras e conformistas de McBride, quando confrontadas com aquilo que Godard fez para abrir, no cinema europeu, a década de 60. McBride troca os fragmentos móveis dos planos cinematográficos de Godard por uma inteireza dramatúrgica adequadamente hollywoodiana: a despeito de suas pretensões de cinema independente.

Algum tempo depois de dar com este sucesso popular de McBride, eu veria seu filme seguinte. Era novembro de 1986. Dava-se o FESTRIO (um antigo Festival Internacional de Cinema que anualmente acontecia no Rio de Janeiro, em novembro). Na imensa Sala Glauber Rocha, no Hotel Nacional, no bairro de São Conrado, no Rio, a exibição de Ajuste de contas (The big easy;1986), de McBride, que só teria exibições comerciais em todo o mundo no ano seguinte. E uma sessão com a presença do diretor. Ouvimo-lo: com sua simpatia de estrangeiro, McBride falou que seu filme, ambientado em Nova Órleans, nos Estados Unidos, tinha algo de carioca, pois a cidade americana, tanto quanto o Rio, era o lugar do jeitinho e do embalo. Esta declaração dá bem a medida das pretensões cinematográficas de McBride: fazer um cinema embalado, jeitoso. Pelo visto, seu cinema parou nos anos 80. Era feito para nós, o público dos anos 80. As plateias das décadas seguintes, ao que parece, não lhe deram muita bola. E como, esteticamente, sua sobrevivência é precária, os filmes de McBride (e A força do amor ainda é o principal deles) ficam numa espécie de limbo histórico: nem para cá nem para lá.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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