A Arte Inconformista de Joao Silverio Trevisan
Homem de letras e homem de cinema ao mesmo tempo, como boa parte dos intelectuais formados ao longo do seculo XX, Trevisan espalha em alguns trechos de Pai, Pai referencias cinematograficas
O paulista João Silvério Trevisan é um nome para se recuperar, em sua grandeza e importância, na história cultural brasileira. Inicialmente sua arte esteve ligada ao cinema, quando realizou o filme Orgia ou o homem que deu cria (1970), incluído entre aqueles filmes subterrâneos cujo movimento foi denominado marginal; proibido pela censura do governo militar, ignorado por quase todos, o trabalho cinematográfico de Trevisan foi interrompido ali, não dando a ele as possibilidades duma obra como as de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, duas vertentes daquele movimento à margem no cinema. Orgia é, assim, um marco para quem o viu como um grito tanto contra o conformismo comercial do cinema quanto contra o Papai Cinema Novo e suas idiossincrasias. Passados os anos, Trevisan entregou-se à sua paixão original, a literatura, e um romance seu, Ana em Veneza (1994), adquiriu o status de prestígio, especialmente a partir da recepção que lhe dera a culta sociedade alemã, interessada em como um brasileiro via, ainda que secundariamente, uma personagem central do universo germânico, o escritor Thomas Mann.
Agora, algo da trajetória humana, social e estética de Trevisan ele próprio o repassa em seu autoensaio Pai, pai (2017), feito de palavras, um livro. O holofote que determina suas meditações em torno de si mesmo são suas origens paternas. A figura do pai o encobre. Ao esbravejar contra o Cinema Novo, de Glauber Rocha e adjacências, ele se enfureceu com o Pai que todavia ama. Trevisan anota sobre Orgia: “Minha intenção era incitar à devoração de Glauber Rocha, diretor que eu amava e nossa geração de cinema amava odiar. Sim, queríamos matar o pai autoritário e castrador que Glauber, enquanto porta-voz do cinema novo, significava para nós, naquele momento.” Do pai natural, Trevisan, já na primeira frase, usa de crueza biológica: “Tudo o que meu pai me deu foi um espermatozoide.” E depois ataca, sem penas, o centro da formação familiar:
“O ser que sou resultou da defloração (consentida, via matrimônio) de uma mulher virgem, que recolheu dentro de si os espasmos de um homem para o qual forneceu o gozo. Não sei se aquela moça da roça sentiu prazer. Ou se fui gerado a partir do primeiro pânico sexual de uma donzela, tomada por medo e dor, ao receber a parte que me coube nessa conjunção carnal talvez assimétrica, tão comum entre machos dominadores e virgens católicas interioranas de antigamente.”
Homem de letras e homem de cinema ao mesmo tempo, como boa parte dos intelectuais formados ao longo do século XX, Trevisan espalha em alguns trechos de Pai, pai referências cinematográficas, o choro estético que tem ao assistir a Au hasard Batlthazar, do francês Robert Bresson, as induções da relação pai-filho ao deslumbrar-se diante de Andrei Roublev, do russo Andrei Tarkovski, e outras tantas citações. Mas nada que desvie o projeto de pensamento do texto de Trevisan: reencontrar o pai, gerar seu pai dentro de si, construir sua catarse literária.
Duas coisas se opõem e se complementam naquilo que é a reestrutura mental de Trevisan em seu livro. Sua formação católica, nascida naturalmente em sua base familiar de origem italiana e organizada em seus tempos de seminário. “Ex-católico, maoísta reticente”, ao sair do seminário, Trevisan entrega-se à sua liberdade. Esta liberdade está na sua sexualidade. Este o outro polo que confronta sua formação religiosa: expõe com brilho estético em Pai, pai seu fervor homossexual. “Num fim de tarde qualquer de meados de 1990, fui a um cineminha decadente do centro de São Paulo assistir a esse filme de Clint Eastwood, que retornava em cartaz... Sentado ao fundo, ocorreu um contato físico com o desconhecido do meu lado, talvez pernas se roçando, sem que eu sequer tivesse prestado atenção ao seu rosto. Eram recursos usuais em paquera de cinema, tão comum na época pré-internet. À medida que o filme corria, minha emoção cresceu a um ponto de fervura tal que se juntou a uma necessidade incontida de contato masculino. Não sei como aconteceu, mas de repente eu tinha agarrado o pênis ereto do homem, exposto fora da calça, com sua absoluta anuência. Assisti a todo o filme como se carreasse para aquele contato íntimo, fora dos padrões em espaço público, as emoções que foram eclodindo dentro de mim.” Trevisan ainda conta da insistência do homem que fossem transar em casa à saída do cinema, mas este homem, paquera de cinema, acabou aceitando do autor de “tomarmos cada qual o seu rumo”, diz Trevisan “o desconhecido tinha sido mero coadjuvante numa cerimônia em que eu descobria, de maneira enviesada por uma iluminação, o sentido da paternidade na própria carne”. Ou seja: “naquele contexto, seu pênis ereto tinha funcionado como uma metáfora maior que remetia ao pai”.
Exilado em sua arte como nos países por onde andou após a interrupção de sua carreira cinematográfica (“Eu me adestrava em assumir o exílio como forma de ser eu mesmo”), Trevisan faz de Pai, pai uma aventura quase à Rimbaud, algo inusitado no mundo brasileiro, ou seja, atravessa sua estação no inferno para não desistir do inconformismo de artista. O resto é coadjuvante na cerimônia.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br