Entre a Personagem e a Pessoa: A Arte da Escrita
Melhor Nao Contar se trata de uma narrativa intima sobre o medo e as oportunidades perdidas


Tatiana Salem Levy é hoje uma escritora brasileira de prestígio. Nasceu em Lisboa, durante os difíceis anos de exílio impostos a tantos brasileiros pela ditadura militar começada em 1964. Ela é filha de Helena Salem, a brilhante ensaísta de cinema de obras como Nelson Pereira dos Santos, o sonho possível do cinema brasileiro (1987) e Leon Hirszman, o navegador das estrelas (1997).
Para a compreensão mais ampla do livro de Tatiana, Melhor não contar (2024), é preciso, antes, situar a realidade paralela à história em torno da qual circula a pena profundamente autobiográfica deste dolorido trabalho da escritora. Helena, a mãe de Tatiana, se aproximou de Nelson Pereira dos Santos, em meados dos anos 80, primeiro como admiradora do artista de cinema que era Nelson e depois se envolveu sentimentalmente com ele; Nelson era casado, tinha filhos no casamento, Helena era separada, tinha suas filhas, Nelson não se separou, Nelson vivia entre duas casas, Nelson e Helena eram amantes; esta história não consta das biografias de Helena e Nelson, foi camuflada pela hipocrisia moral habitual em nossa sociedade, mas agora o talento literário de Tatiana a faz explodir em algumas páginas cortantes.
Quando o leitor-homem se dispõe a ler Melhor não contar, resta sempre esta percepção crítica subterrânea de que ele nunca terá todo o instrumental para captar tudo o que, com sua arte, Tatiana expõe em palavras. Há coisas que somente o secreto duma alma de experiência feminina, numa sociedade dominada por machos violentos e mandões, pode experimentar plenamente. Ainda assim, ouso dizer que quem se interessa pela construção da literatura no Brasil pode topar algumas identidades culturais e estéticas com o universo que Tatiana desnuda em Melhor não contar.
Tatiana começa pela cena da piscina. Ela tinha dez anos. Ela, sua mãe e seu padrasto descansavam na piscina da casa de praia do padrasto, às vésperas do verão. Quem era a mãe de Tatiana? A ensaísta Helena Salem. Quem era o padrasto? O famoso cineasta Nelson Pereira dos Santos. Isto não vai dito de cara. A ponte com esta realidade é feita depois. Pode-se ler tudo como literatura, um drama narrativo; mas a relação com a realidade, especialmente para o leitor de Helena e o espectador dos filmes de Nelson, torna a construção literária mais cortante. No entanto, isto vai sugerido no texto de Tatiana, sempre autocrítico, o que ela faz é literatura, extraída da realidade, certo, mas não deve desculpas à realidade. Nelson, Helena, a própria Tatiana são aqui personagens da escritora Tatiana; as pessoas que as inspiraram ficaram na retaguarda.
Nelson desenha a pequena Tatiana, naquela beira de piscina, com tintas indisfarçadamente eróticas. Mostra a Helena que mostra a Tatiana: como uma obra de arte qualquer. A pequena Tatiana se choca: haveria algo ali da prévia do assédio (ou já era um assédio?) que, sete anos depois, a mãe Helena doente (morreria aos 51 anos, de câncer), o padrasto, bêbado, invadindo o apartamento em que a enteada morava, perpetraria. “Na folha branca, traços simples feitos com caneta azul contornam o corpo de uma menina sentada; uma menina sem rosto —sem olhos, sem nariz, sem boca— com um cabelo levemente encaracolado. Seus mamilos, apontando um para cada extremidade do papel, chamam a atenção. Há mais tinta neles, foram desenhados com força. Estão eretos, reparo.”
Melhor não contar é literatura. Nasceu quando tinha de nascer do espírito de Tatiana. Mas não deixa de expor, literariamente, um ajuste de contas de Tatiana com sua própria vida. Questiona, por exemplo, porque nunca ousou relatar à sua mãe os assédios de Nelson, o padrasto. Questiona também se sua mãe não sabia do que acontecia e, embora uma mulher culta e avançada, fez que não via, por acomodação familiar e sentimental. Revelou ter confrontado em Paris a Nelson, recebendo um diálogo compassivo, evasivo, inútil mesmo. “E assim fui aprendendo que os valores passados em casa muitas vezes entravam em conflito com a realidade.” A primeira questão: quem era Nelson para ela, Tatiana, e sua irmã e sua mãe? O padrasto, o amante da mãe, o namorado da mãe, o companheiro da mãe? Por que você, mãe, aceita tudo isto? Eu sei o que que faço, o que me convém, teria dito a mãe.
Melhor não contar é uma narrativa íntima sobre o medo e as oportunidades perdidas, a timidez do momento e o momento em que a literatura se abre, ainda que tardia, em sua coragem. “Eu tinha medo de lhe contar. Tinha medo de ser a portadora de uma tristeza enorme. De que ela me amasse menos. De que desconfiasse de mim. Fui tão esmagada por esse segredo que até encontrei um jeito de me tornar paciente de sua psicanalista, na esperança de que ela me respondesse se eu deveria ou não contar à minha mãe, ou como se, contando para a sua psicanalista, eu estivesse contando também à minha mãe.” E, no entanto, Tatiana sabe que Melhor não contar existe assim como está porque foi escrito agora, quando Helena Salem e Nelson Pereira dos Santos estão mortos, quando eles só podem inspirar as personagens de Melhor não contar. “E me deitar no seu colo, enquanto escrevo esta história como escrevem outras mulheres: numa primeira pessoa autobiográfica, num tom de voz muito baixo, quase um sussurro, assumindo que eu sou eu, a narradora é a personagem, e a personagem é a autora.” Mas, já asseverava a poetisa e ensaísta Ana Cristina César, literatura não é documento, não é a realidade primeira.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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