Crítica sobre o filme "Luz de Inverno":

Eron Duarte Fagundes
Luz de Inverno Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 28/11/2005
A crueldade que pode evolar-se da alma do ser topa um de seus momentos mais austeros e descarnados em Luz de inverno (Nattvardsgasterna; 1962), o segundo filme da trilogia do silêncio dirigida pelo sueco Ingmar Bergman no começo da década de 60 do século passado. A secura nórdica do cineasta e sua absoluta contenção de meios narrativos chega à extenuação formal no longo plano-seqüência fixo em que a personagem de Marta simula ler na mente da personagem do pastor Tomas uma carta que ela lhe entregou porque lhe faltou coragem para falar das coisas diretamente para ele (na verdade, trata-se de um longo primeiro plano fixo em que a face, o olhar e a boca da atriz Ingrid Thulin são tudo de que Bergman necessita para expor seus propósitos estéticos); como no francês Robert Bresson, Bergman muitas vezes abdica de quase tudo o que o cinema oferece para deixar na tela a essência do cinematógrafo e penetrar na essência da alma; mas o despojamento metafísico do sueco difere bastante da plasticidade espiritualmente despojada de Bresson, basta ver lado a lado com Luz de inverno um filme de Bresson apontado como referência do filme de Bergman, Diário de um padre (1950): de um lado, a rudeza escandinava de Bergman, de outro o tenso cerebralismo francês de Bresson.

Como na realização de Bresson, a narrativa de Bergman toma por centro a figura dum religioso que é procurado por algumas pessoas para ajuda espiritual. Mas as semelhanças temáticas fecham-se por aí. O padre francês de Bresson encarna a espiritualidade autêntica e tranqüila; sua convivência com o lado mundano das coisas é que o vão manchando, sem todavia alterar sua natureza. O pastor de Bergman é um espírito cruel cujas palavras de rotina ditas na missa soam vazias como os próprios sinos que chamam inutilmente os fiéis no campanário; embora em seus rituais Tomas fale da glória de Deus e da importância da caridade, suas ações são sempre perversas: ao atender a um potencial suicida, o pastor só fala de si mesmo, de seus problemas, de seu egoísmo, não evitando que ao sair do templo o homem cometa seu gesto final; em sua relação com Marta, que lhe quer bem, só diz frases ásperas, de rejeição e desamor. Bergman desenha com raro brilho cinematográfico, ao longo de um filme curto (uma hora e vinte minutos), as contradições e as hipocrisias da alma de seu pastor, talvez um pouco calcado no próprio pai do cineasta, que era pastor luterano, e que teve seqüência no amedrontador pastor de Fanny e Alexandre (1982).

A seqüência de abertura é bastante longa, e seu realismo cru simula o documentário de uma missa; a câmara centra-se basicamente na figura do pastor, vai acompanhando sua peroração cristã que refaz monotonamente as orações milenares. É uma seqüência diferente, por exemplo, da missa de abertura de Minha noite com ela (1969), do francês Eric Rohmer, em que a câmara é posta junto do público, observa o público sendo a algaravia do padre o foco de fundo do quadro. Por que Bergman nos martela com a conversa fiada e empolada do pastor? Para expor mais crua e cruelmente os sintomas da doença de sua personagem, a hipocrisia para com o outro. A seqüência final, rápida e abrupta, vai rimar estranhamente com a de abertura: o padre está começando uma missa onde a única fiel é Marta e diz novamente suas elevações para Deus. Completa-se a ironia metafísica de Bergman, e o espectador recebe o escurecimento da última imagem como um soco em seu cérebro: faria sentido a existência humana nesta terra? (Eron Fagundes)