Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 04/01/2006
É em Jean-Luc Godard que o cinema atinge o ápice de uma de suas revoluções. Definitivamente, ele não sabe filmar diegeticamente: ele desarticula a habitual progressão narrativa, até na utilização da música dentro do processo fÃlmico. Escreve o ensaÃsta (e cineasta) francês Eric Rohmer em Ensaio sobre a noção de profundidade na música; Mozart em Beethoven (1997; um ensaio sobre música): “Godard é como o violoncelista que decreta, por conta própria, que faz parte da mobÃlia urbana. Seus filmes, como se sabe, são feitos de colagens de objetos, de paisagens, de textos e, por que não, de músicas. Uma frase de Beethoven tem nele tanto cabimento quanto outra de Platão, ou de Raymond Chandler. A música não é utilizada como um elemento fÃlmico de apoio. Ela é simplesmente filmada, como o podem ser as árvores, o mar, o céu. Faz parte do mundo.â€
Em Prenome Carmen (Prénom Carmen; 1983) Godard vai usar o Quarteto opus 132, de Ludwig van Beethoven, em tempo integral ao longo do filme. A música é uma peça da câmara, lado a lado com os tiroteios, as buzinas de carros, as aproximações eróticas, o luxuoso hotel, o mar em rebentações, a cidade à noite; a música no filme de Godard obedece o mesmo sistema estabelecido por Godard para seu fotógrafo, Raoul Coutard, um sistema de esculturas, tão artificial e tão natural ao mesmo tempo. Godard, escreveu Rohmer lembrando que é algo de que todos sabem, faz colagens das partes de que se compõe o universo. Em Carmen estas colagens, instintivas e arbitrárias, atinge um de seus pontos mais notáveis, chegando a uma unidade construÃda que não desdenha dos aspectos demolidores do estilo desestruturante de Godard.
Se comparamos o Godard da década de 80 com o Godard dos anos 60 (A chinesa, 1967, por exemplo), veremos que as travessuras jovens do cineasta se converteram em melancolia e lentidão, há menos tagarelice e mais concentração de dizeres, embora o realizador permaneça (nunca o deixou de ser, desde O desprezo, 1963) um filósofo do cinema, posição que ele acentua em Elogio ao amor (2001).
Numa dedicatória final, Godard oferece Carmen à memória dos pequenos filmes, que são na verdade, com sua precariedade de produção, os autênticos inspiradores de toda a obra do diretor francês. É na liberdade dos pequenos orçamentos que Godard edificou as possibilidades dum filmar revolucionário, sem peias, uma nova relação entre as imagens.
Em Carmen Godard lançou uma atriz de vinte anos, uma bonita holandesa chamada Maruschka Detmers; ela se tornaria uma peça de escândalo do cinema da época quando alguns anos mais tarde ousaria encenar para o italiano Marco Belochio em Diabo no corpo (1986) uma das felações mais comentadas da história do cinema. Em Carmen Godard e o espectador se contentam com espiar seus seios pontiagudos e seus fartos pêlos vaginais.
Godard, como em outros filmes seus, tem uma função de intérprete em Carmen, levando seus pendores metalingüÃsticos a um ponto mais secreto, obscuro mesmo. Godard interpreta um produtor de cinema que, no começo do filme, está doente num quarto de hospital e recebe a visita de sua sobrinha (Maruschka) interessada em obter patrocÃnio para um filme e seus amigos querem fazer. Sombrio e desolado como um fim de tudo, a figura fÃsica de Godard é uma imagem-sósia de seu próprio filme: duro e amargo; duas expressões despontam de sua máquina de escrever naquele quarto hospitalar, “mal visto†e “mal faladoâ€, conceitos da marginalidade de iconoclasta de Godard.
Naqueles anos, outros filmes extraÃram sua inspiração da personagem de Carmen Merimèe e da ópera de Bizet, entre eles um cinebalé do espanhol Carlos Saura e uma realização do italiano Francesco Rosi. Mas a Carmen de Godard é a única verdadeiramente nova a partir de um velho assunto: a arte de Godard de remexer em velhos baús culturais está intacta em Prenome Carmen. (Eron Fagundes)