Crítica sobre o filme "Cama de Gato":

Eron Duarte Fagundes
Cama de Gato Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 26/01/2006

O filme começa tagarelando a gíria agressiva dos jovens brasileiros de hoje e vai concluir-se derramando-se na mesma tagarelice. A tagarelice dramática da construção narrativa do filme vai ter sua linha contínua nos depoimentos documentais agregados à realização. Cama de gato (2002), dirigido por Alexandre Stockler, é um filme nacional que passa o tempo inteiro expelindo diálogos e até seus créditos finais são subjugados pela falação interminável; de certa maneira, a discussão proposta pelo cineasta (a gratuidade da violência de nossa juventude de classe média, a uma luz filosófica da teoria do livre arbítrio) é apresentada assim mesmo, como uma sentença que não se esgota mesmo depois que a projeção se fecha nos créditos conclusivos.

Stockler, oriundo do teatro, se vale de seu provocativo “analfabetismo cinematográfico†para impor ao espectador duas situações básicas: o terror claustrofóbico da encenação e um visual sujo armado com câmara digitais que, apesar de seu exterior modernoso, evoca o mais precário udigrudi praticado no Brasil nos anos 70. A despeito de sua irreverência para com as formas clássicas de filmar, lembrando às vezes as inserções metalingüísticas do realizador franco-suíço Jean-Luc Godard, Stockler transforma a gramática de seu filme em algo rançoso, pois foi incapaz de elaborar os elementos aleatórios de suas encenações; nada mais artificial em Cama de gato do que seu brutal realismo, a que falta o brilho e o engenho dos grandes mestres da perversidade, como o italiano Pier Paolo Pasolini ou o espanhol Luis Buñuel, e se disserem que o artificial é adrede buscado por Stockler, direi que a construção deste artifício esbarra numa total falta de jeito do realizador (coisas de um homem de teatro metido no cinema?).

O observador poderia valer-se de dois outros filmes brasileiros recentes para estabelecer os limites da proposta de Stockler. Nina (2004), de Heitor Dhalia, e Contra todos (2004), de Roberto Moreira, foram narrativas agressivas e sujas; mas estão muito longe do estado de coisa perdida em que está mergulhado Cama de gato, mais uma curiosidade do que um verdadeiro “gato†do cinema nacional.

Enfeixando estas observações, é irônico constatar que um pulcro ator de talevisão como Caio Blat empreste sua doce imagem a uma seqüência dura de sexo explícito (a comentada cena do estupro da garota por três amigos). Em todos os aspectos, Cama de gato é tão gratuito como filme quanto são gratuitos os gestos de suas personagens; há um contágio que se impregna das criaturas para a própria realização. E o que sobra para o pensamento situa-se à margem propriamente da narrativa de Stockler. (Por Eron Fagundes)