Crítica sobre o filme "Através de Um Espelho":

Edinho Pasquale
Através de Um Espelho Por Edinho Pasquale
| Data: 17/10/2005
“Quando nasci, em julho de 1918, minha mãe estava com gripe, meu estado como recém-nascido não era dos melhores, e por isso fui batizado de emergência no próprio hospital.†Esta frase abre o livro Lanterna mágica (1987), autobiografia de um cineasta fundamental. Bem ao gosto dos questionamentos metafísicos embutidos nos filmes do realizador que ora referimos, podemos sorrir do acaso que talvez não seja um acaso: que seria do cinema do século XX se a gripe da mãe do diretor sueco Ingmar Bergman tivesse piorado e matado seu bebê? Certamente a história da sétima arte seria outra: sem o brilho luminoso das queimações da alma que Bergman erigiu como ninguém.

O lançamento em dvd, pela Versátil, de Através de um espelho (Saasom I en Spegel; 1961) renova a constatação da profundidade hipnótica das imagens criadas por Bergman: somos contritos espectadores das perturbações espirituais elaboradas por uma narrativa tão tensa quanto densa. Sem embargo de ter ganho o Oscar de filme estrangeiro (o Oscar, sabe-se, é uma premiação comercial; o outro Oscar ganho por Bergman foi com Fanny e Alexandre, 1982, seguramente seu trabalho mais digerível pelo público, com formas cinematográficas menos duras e sombrias que o habitual), Através de um espelho permaneceu para todo o sempre inédito nos cinemas brasileiros: uns culpavam o excessivo rigor formal do cineasta, impedindo uma aproximação com as platéias latinas; outros viam a ação da censura, pois o filme aludia veladamente à questão do incesto entre irmãos, especialmente na cena torturante em que os manos se encontram, num dia de muita chuva, na caverna para a qual ela, em sua loucura, tinha fugido.

Na verdade, Através de um espelho é a radiografia, cinematograficamente impiedosa, da demência duma mulher. Como dizem as anotações do diário do pai de Karin, a louca, aquilo a que estamos assistindo são detalhes de uma desintegração: a alma da protagonista queima e se desintegra. Bergman ainda vivia intensamente os tempos de sua inquietação com a divindade, a presença-ausência de Deus entre nós; se O sétimo selo (1956) e A fonte da donzela (1959) questionavam abertamente a existência de Deus, pode-se dizer que, com a trilogia do silêncio (formada também por Luz de inverno, 1962, e pelo maravilhoso O silêncio, 1962), Bergman se encaminhava para uma discussão mais humana que metafísica da questão religiosa, algo que se materializaria completamente uma década depois em Gritos e sussurros (1973), seu filme plástica e tematicamente mais avançado.

O cenário isolado, longe da civilização de Através de um espelho favorece a meditação transcendental. A ambientação é a natureza da ilha de Faro, onde Bergman mora há mais de quarenta anos e onde ele rodou o extraordinário documentário Minha ilha (1979). A característica concentradora da ilha, em Através de um espelho, tem a mesma função formal e temática da casa sombria e vermelha de Gritos e sussurros: oprime e força a reflexão. Neste cenário natural Bergman elege uma personagem-centro, a mulher que enlouquece, e três personagens-satélite: o marido, o pai e o irmão, todos inquietos com a doença da mulher, da filha e da irmã; bem antes da fase psicanalítica de Cenas de um casamento (1974), Face a face (1976), Sonata de outono (1978) e Da vida de marionetes (1979), Bergman elaborava um complexo jogo psicológico que nada devia aos melhores momentos de artes refinadas como a literatura.

Para estruturar com coerência, rigor e profundidade dramática os conflitos nebulosos de suas criaturas, especialmente os da protagonista (que funciona como um holofote para os demais), Bergman tem o mesmo procedimento de sempre: é uma equipe cinematográfica habitual que identifica uma figura de cinema inteiriça a que chamamos Bergman, ou seja, a instância narradora autenticamente bergmaniana. Os atores são circulares na filmografia de Bergman: Harriet Andersson, que vive a doida em Através de um espelho, viria a ser, doze anos depois, em Gritos e sussurros, a irmã que estaria morrendo; Gunnar Bjornstrand, o pai da doida, interpretara o frio filho do médico de Morangos silvestres (1957); Max Von Sydow, que faz o marido de Karin, é um rosto característico do universo de Bergman e já fora antes o cavaleiro medieval em O sétimo selo. Circulam também pela película de Bergman outros colaboradores: o fotógrafo Sven Nykvist constrói um preto-e-branco que é a própria iluminação da alma; e lá vem J.S. Bach, o músico dos músicos, para abraçar-se com o cinema de Bergman e revelar a porção espiritual que estava faltando.

Bergman se está aproximando dos noventa anos, há mais de duas décadas deixou de rodar para cinema, mas há um filme seu feito para a televisão, O mundo de luz e sombra (1997), que se equipara a seus mais geniais trabalhos, entre os quais está este Através de um espelho, que contém um final revelador e agudo das relações entre um pai e seu filho e toda a questão da incomunicabilidade e da incompreensão entre as gerações; a frase conclusiva dita pelo filho depois que seu pai lhe dá as costas e retira-se e a perplexidade do rosto do garoto em primeiro plano compõem um momento antológico de cinema. (Eron Fagundes)