Crítica sobre o filme "Sorrisos de uma Noite de Amor":

Edinho Pasquale
Sorrisos de uma Noite de Amor Por Edinho Pasquale
| Data: 05/04/2006
Equivocadamente comparado com A regra do jogo (1939), do francês Jean Renoir, (talvez por sua narrativa tentacular, espalhando-se em várias personagens cujos destinos se atravessam uns nos outros à maneira dos frívolos vaudevilles de teatro popular, talvez por expor nos mesmos cenários aristocratas e subalternos), Sorrisos de uma noite de amor (Somarnattens leende; 1955), do sueco Ingmar Bergman, foi o primeiro sucesso internacional do realizador, embora Noites de circo (1953) já o fizesse antes conhecido fora da Suécia, mas era tão-somente um sucesso de estima junto a alguns círculos de cinéfilos: Sorrisos, um sucesso comercial, permitiu a Bergman converter-se num artista do cinema que pudesse ser o dono absoluto de seus filmes nas décadas seguintes.

Apesar de suas aparentes facilidades, Sorrisos de uma noite de amor é uma comédia profundamente irônica sobre as relações amorosas. Uma das diferenças essenciais do filme de Bergman para com o citado clássico de Renoir está na ênfase social do francês: Bergman centra suas inquietações não propriamente nas relações de classe, mas nos conflitos etários (jovens e madurões), aproximando-se muito mais da ironia enviesadamente intelectual do francês Eric Rohmer do que da visão histórica de Renoir.

Como se disse, o vaudeville fútil é o modelo do filme de Bergman, assim como fora o modelo de A regra do jogo. Mas Sorrisos de uma noite de amor subverte a superficialidade do gênero e atinge, por frases, imagens e gestual dos atores, a mesma profundidade que Bergman buscou em toda a sua filmografia. A trama de Sorrisos fascina por um agudo grau de observações emanadas dos diálogos escritos por Bergman, expondo com delicadeza e um jeito literário de século XIX (certamente fruto das leituras do cineasta, um homem culto) o cinismo de uns e a ingenuidade de outros, tudo costurado por um narrador (a câmara) atento e disfarçadamente distanciado. Fotografado em sutil claro-escuro por um dos fotógrafos habituais de Bergman na época, Gunnar Fischer (Sven Nykvist, que seria mais constante nos anos 70 e 80, fotografou Noites de circo, de 1953), Sorrisos exibe um dos esplendores estéticos do diretor nórdico.

Com que se diverte Bergman em sua obra-prima? O advogado Fredrik Egerman, casado com uma mulher bem mais jovem a quem ainda não possuiu fisicamente embora vivendo com ela há dois anos, reencontra sua ex-amante, a vulgar Desirée, atualmente envolvida com um militar, por sua vez casado com uma amiga da jovem esposa de Egerman; para complicar, a jovem esposa do advogado se apaixona pelo deprimido filho de seu marido. Todos estes conflitos sentimentais vão explodir no ao mesmo tempo sombrio e divertido jantar que a velha mãe de Desirée dá para todos estes convidados; se em Noites de circo os jogos de ciúme assomam no espetáculo da noite, em Sorrisos tudo vem a transparecer no jantar, um pouco armado como se fosse um espetáculo farsesco, no mesmo padrão de Noites de circo. Bergman, antes de Rohmer, faz seu conto moral, discutindo as dinâmicas entre as relações físicas e as relações sentimentais; como Rohmer, Bergman exerce uma direção de atores precisamente marcada para cada intérprete, influindo inclusive na modulação de voz: a empostada caracterização de Gunnar Björnstrand como o advogado e a álacre desenvoltura em cena de Harriet Andersson como uma criada travessa são alguns dos contrapontos interpretativos utilizados por Bergman.

Sorrisos de uma noite de amor é uma comédia, talvez a única comédia integral da filmografia de Bergman. É certo que há laivos cômicos em Noites de circo, O rosto (1958) ou Fanny e Alexander (1982), mas em nenhum o sentido íntegro da comédia cinematográfica aparece, mesmo que Fanny e Alexander, por sua estrutura baseada na alegria de filmar, se pareça muito com Sorrisos. E a finalização alegre e exultante desta obra-prima (a criada e um velho gordo e lascivo despertam extasiados de vida no amanhecer ao ar livre no verão sueco: é quando surge o terceiro sorriso da noite de amor) assume um tom que o cinismo e a crueldade adquiridos por Bergman a partir dos anos 60 abandonariam.

Esta antológica reflexão sobre o amor se baseia num pensamento que Bergman põe na boca de uma personagem: o amor se estrutura em torno de três bolas, o coração, as palavras e os órgãos reprodutores. Sorrisos de uma noite de amor é um jogo de sedução humana e cinematográfica como poucos.(Eon Fagundes)