Crtica sobre o filme "Silêncio, O":

Eron Duarte Fagundes
Silêncio, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 01/03/2006
O silêncio (Tystnaden; 1962) é um filme perfeito sobre a desarmonia da alma. Coroando a trilogia do silêncio ou também conhecida como trilogia da fé (porque provoca a divindade em seu silêncio sobre os destinos do mundo), composta por outras duas obras-primas, Através de um Espelho (1961) e Luz de Inverno .

(1962), O silêncio usa de imagens extremamente secas e austeras para reflexionar sobre o inferno de se estar vivo; creio que só em Gritos e sussurros (1972) o realizador sueco Ingmar Bergman atingiria tão sensível rigor plástico e espiritual em cada movimento de seu filme. Por todos os ângulos que se fitar o filme de Bergman, ele é perfeito em sua capacidade de introduzir-nos sem dó num universo cujas estradas são pedregosas; saímos da visão do filme sem saber ao certo por onde andamos, pois os escassos diálogos e as violentamente introspectivas imagens são irredutíveis a conceitos, quaisquer conceitos. Mistérios e obscuridades permeiam as andanças visuais de O silêncio. Agindo como uma inquieta lanterna, Bergman esboça uma arte socrática, onde a pergunta é mais produtiva do que a resposta: somos atirados no vazio, mas é um vazio cheio de conteúdo espiritual, assim como aquelas peças do inglês William Shakespeare que, navegando no som e na fúria sem significado, constroem uma significação plena.

Há um aspecto revolucionário em O silêncio que pode passar ao largo de nossa percepção se desfrutarmos do filme de relance. Bergman tira o pé de apoio moral que há em tudo quanto é filme, uma certa moralidade de que os cineastas do espírito (Bergman em seus outros filmes, o italiano Michelangelo Antonioni, o francês Robert Bresson) nunca lograram afastar-se. São muitas vezes imagens em branco as de O silêncio. O observador não é chamado a julgar o comportamento das personagens. Estamos diante de relatos sombrios e duros: lembra o escritor tcheco Franz Kafka? Naufragado o ponto de vista, nossa visão é invadida por metáforas rígidas e perversas diante das quais o abismo de um mundo sem sentido dilacera nossa experiência cinematográfica. O possível ateísmo de Bergman, revelado no grito do pai da donzela desonrada em A fonte da donzela (1959), se materializa integralmente em O silêncio: o homem está só no universo, ninguém lhe ouve os chamados em murmúrio, ele está viajando por lugares cuja língua e atitudes desconhece. O universo segundo Bergman em O silêncio: um oco preenchido inutilmente pelo homem, esse “bicho da terra tão pequeno”, como escreveu o poeta português Luís de Camões na última estrofe de sua epopéia Os Lusíadas (1572).

Na verdade Bergman trata, em seus filmes, do fratricídio, da matança entre irmãos, onde a bala é a palavra e a expressão facial, ambas doídas, cheias de um sangue não visível, interior. Em Gritos e sussurros há uma exacerbação poética e metafísica, que em O silêncio parece mais presa à profundidade filosófica do cinema intelectual europeu dos anos 60. O duelo psicológico: a sensual e histérica Anna e sua adoentada e recolhida irmã Esther simbolizam os conflitos entre a carne (Anna) e o espírito (Esther) que nos habitam em cada gesto; este contraste ontológico seria depois refeito em Gritos e sussurros na alternância entre Karin e Maria, modificando um pouco o viés carnal-espiritual ou substituindo-o pela relação entre a aspereza de Karin e a doçura de Maria. Em O silêncio Anna vive da vagabundagem sexual, Esther da inoperância de sua vida; completando o pequeno quadro de personagens, um menino, filho de Anna, um certo ponto de equilíbrio nos egoísmos diferenciados das protagonistas (o egoísmo sexual e o egoísmo místico). Mas há também ramificações secundárias de seres: anões que falam espanhol e um solícito velho da localidade que se esforça por ajudar a Esther em seus transes enfermiços. Bergman é especialmente admirável em fazer-nos ver simultaneamente cenas que ocupam ao mesmo tempo o mesmo cenário (depois de esgotar um primeiro plano de Esther, o diálogo e um breve movimento de câmara vai desviar nossa atenção para uma conversa entre Anna e seu filho no quadro de fundo) ou o uso a certa altura de um sintagma alternado que acompanha o vagar individual de três personagens (o garoto com os anões, Esther em seu isolamento, Anna em suas vadiagens).

No começo do filme Bergman surpreende suas três personagens dentro dum trem; pela fotografia, pelo jeito dos atores, pela crueza dos enquadramentos, os seres em cena parecem tomados pelo nada: é a câmara niilista de Bergman. Esta seqüência inicial exercita a tensão espiritual por cerca de sete minutos. Desembarcam num lugar cujo idioma não entendem e hospedam-se num hotel; neste lugar e neste hotel os três vêm a viver seus percalços da alma, desarmoniosa alma; a primeira imagem depois do desembarque mostra o garoto à janela do quarto de hotel, espiando a cidadezinha, os movimentos de populares lá embaixo; trata-se duma rima visual com as cenas do garoto à janela do trem, ele encantado com o circular da paisagem em travelling lateral; Bergman brinca com estas minúsculas (miniaturas) possibilidades formais do cinema. No fim do filme a câmara vai novamente para dentro do trem: mas as personagens já não são três, mas duas, Anna e o filho continuam a viagem para casa, enquanto Esther ainda permaneceu no hotel do lugarejo; a câmara acompanha as expressões hirtas e doloridas de Anna à janela do trem, o rosto de Anna diante da paisagem rápida e do vento incômodo; alternando planos da mulher na janela com planos do rosto do garoto, até que uma aproximação forte de câmara apanha o rosto do garoto em primeiro plano: é a última imagem do filme, um plano abrupto e perplexo, um fecho inesperado (no curso de um desenvolvimento dramático) como era hábito ocorrer no cinema da época que adotava uma dramaturgia menos impositiva e certinha que a de hoje.

Entre as chaves estéticas de O silêncio, convém aludir ao compositor Johan Sebastian Bach. É uma música de Bach que o velho solícito do hotel traz para Esther ouvir num determinado momento. Johan é o nome do filho de Anna; Johan afeiçoa-se a Esther, a despeito da ojeriza que Anna tributa à irmã. É como se Bergman quisesse com sua arte atingir as planuras de Bach, achar as imagens correspondentes aos acordes do compositor.

Sabe-se também que O silêncio teve problemas com a censura brasileira da década de 60. Lançado no Brasil com um atraso de cinco anos, só foi liberado após ver três seqüências extirpadas da montagem: a brevíssima cena em que Esther se masturba deitada na cama, Anna na escuridão duma sala de teatro vê um casal aos avanços sexuais e a briga verbal das irmãs quando Esther depara com Anna em enleios com um macho (o forte da cena é que Anna faz tudo para provocar moralmente Esther). Sem estas cenas, muito da ideologia e da força de O silêncio deve ter-se perdido para os espectadores da época; eu assisti ao filme pela primeira vez em 1981, num cineclube porto-alegrense, sem cortes felizmente, e o observador deste terceiro milênio tem no mercado de dvd a cópia integral para avaliar a eternidade de uma realização sombria mas esteticamente luminosa, o ponto notável do caminho duma religiosidade de ateu percorrida por Ingmar Bergman em sua filmografia.

Para bem edificar seu arcabouço estilístico, o diretor nórdico imprime seu modo de direção às atrizes Ingrid Thulin e Gunnel Lindblom; se Antonioni contesta a aridez de volume das peças do cenário pela utilização de lentos movimentos do elenco, Bergman contesta a rigidez de sua estruturada ambientação pelo aparecimento de faces amargas minuciosamente construídas no celulóide. Ingrid Thulin é uma intérprete eterna de Bergman; confronte-se sua doentia e casta Esther de O silêncio com a infiel e má Karin de Gritos e sussurros, onde Ingrid, em cena antológica, corta com um caco de vidro o interior de seus órgãos genitais para exibir o sangue ao marido que a personagem odeia; em O silêncio a Esther de Thulin é o antípoda de Karin. Gunnel Lindblom veio a dirigir filme, conheço um, Vila paraíso (1977), considerado um exemplar do cinema no feminino na década de 70.

Sempre é bom lembrar que em O silêncio Bergman elaborou uma estética de ruídos cinematográficos que seria utilizada e aprofundada em Gritos e sussurros: estas duas obras-primas separadas por dez anos são como rebentos gêmeos do grande cineasta sueco. Um dos pontos em que os dois filmes se parecem muito é na valorização do silêncio, um cenário áspero, um rosto humano imbatível. Para começo de conversa, tanto numa quanto noutra película a palavra tarda a aparecer. Em Gritos e sussurros ela surge inicialmente sob a forma escrita: a câmara debruça-se sobre o diário de Agnes. Em O silêncio os sete minutos iniciais no trem justificam o título, ninguém fala nada, três personagens que só se expressam com seus gestos de desespero, um silêncio circundado por ruídos vários e interrompido pela voz dum cobrador que anuncia um lugar de paragem; os diálogos iniciais que aparecem são triviais, o garoto, indagado pela mãe, diz estar observando como os pés dela a levam a todos os lugares a que quer ir. É a ingenuidade primitiva do menino que dá um certo frescor a uma narrativa noturna; Bergman pretende colocar o espectador no papel do menino, o que exigiria um esforço inaudito em face dos temas excessivamente adultos tratados.

Assim, O silêncio é um perfeito estudo da desarmonia da alma, vazado numa crueldade formal que só tem equivalente em Gritos e sussurros; abandonando quase inteiramente os duetos verbais de Cenas de um casamento (1974) e Sonata de outono (1978), desligando-se da grandiloqüência estilística de Morangos silvestres (1958), valendo-se do rosto humano como parte dum universo atroz (e sem enforcá-lo nas malhas narrativas como em Da vida de marionetes, 1980, e Depois do ensaio, 1984), Bergman traduz a profundidade do silêncio cinematográfico de maneira diversa daquela de Antonioni: abre-se antes para a desesperança íntima que a escavação espiritual duma burguesia sem comunicação. (Eron Fagundes)