Crtica sobre o filme "Sol por Testemunha, O":

Edinho Pasquale
Sol por Testemunha, O Por Edinho Pasquale
| Data: 01/03/2006
Segundo o crítico francês François Truffaut, num artigo de 1954, “o talento de René Clément é o de um simulador”. E a precisa ironia de Truffaut alvejava: “o estilo de Clément consiste sempre em imitar o talento.” Truffaut foi um analista de filmes demolidor: as formas acadêmicas do cineasta francês René Clément o incomodavam. Até mesmo o frescor de Brinquedo proibido (1952) imitava, asseverava Truffaut, a crueldade da infância: ou seja, Clément usava os golpes baixos do cinema para atrair o público.

Há um certo exagero nestas considerações de Truffaut, embora eu não me atreva a equiparar os pudores de condução narrativa de Clément ao rigor clássico de outro francês, o realizador Jean Renoir, um dos poucos da velha guarda que resistiu aos impropérios dos jovens pensadores dos anos 50 e 60 entre os quais Truffaut era uma cabeça profética. Aqui estamos, pois, diante de O sol por testemunha (Plein soleil; 1959), que permite aquilatar o grau de sobrevivência do cinema de Clément; a minúcia de narrador de Clément e a segurança com que ele articula os episódios são dados cuja modernidade é irrefutável; o que pode talvez ter envelhecido no filme é a afeição de Clément por um suspense à maneira do inglês Alfred Hitchcock, e aí a comparação depõe contra o francês.

Extraído dum romance da autora policial Patrícia Highsmith, a mesma que deu algumas linhas para O amigo americano (1977), do alemão Wim Wenders, O sol por testemunha trata da aventura dum criminoso que percorre o filme à sombra da impunidade. Um amigo cinéfilo viu em Ponto final (2005), do norte-americano Woody Allen, referências ao clássico de Clément, particularmente equiparando os ágeis planos do assassinato em Allen nos corredores dum prédio de apartamentos em Londres à cena criminosa no barco no litoral europeu onde Clément se vale de meias elipses; não me parece: a introspecção psicológica de Allen se distancia facilmente das superfícies policiais de Clément. Claro: Allen certamente conhece o filme de Clément e é bem possível que lhe tenha aproveitado a estrutura técnica de certas seqüências; mas isto está longe duma influência intrínseca, que no caso de Allen seria mais o romancista russo Fiódor Dostoievski.

Como dado histórico, reencontra o espectador a jovem estrela Alain Delon antes de sua passagem pelos cinemas dos gênios (Luchino Visconti, Michelangelo Antonioni, Joseph Losey) e a possibilidade de entrar em breve contato com um ator da estirpe de Maurice Ronet, aquele suicida do francês Louis Malle na obra-prima Trinta anos esta noite (1963). A atriz Marie Laforêt preenche com agradável vulgaridade a questão da mulher entre dois homens.

Outra curiosidade: o músico italiano Nino Rota, habitual colaborador do também italiano Federico Fellini, compõe uma partitura bastante diferente daquelas que fazia para Fellini, cujo auge da associação música-imagem é Amarcord (1973); menos exultante e menos narcisista, Rota faz desfilar acordes corretos mas sem brilho, ora adequados ao clima narrativo, ora soltos e sem função.

O processo de desmascaramento da personagem do assassino, algo no qual a narrativa se envolveu segundo as leis morais da década de 50, tem na cena final (quando Tom é chamado ao telefone para que uma possível testemunha o identifique) uma questão abruptamente interrompida, como soía acontecer nos filmes de então, mesmo em cineastas acadêmicos como Clément, pois na época o cinema não era tão abotoado quanto hoje. Na refilmagem que Anthony MInghella fez em 1999, O talentoso Ripley, este final é abolido: na imagem que mostra Tom incrustado no mar do qual se comporta um pouco como dono, a impunidade da esperta personagem é exaltada dentro do cinismo que caracteriza a visão humano-cinematográfica de nossos dias. (Eron Faghundes)