Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 13/03/2006
O italiano Roberto Rossellini é o mais completo cineasta que o mundo conheceu. Sua influência está nos mais variados recantos cinematográficos: os italianos Federico Fellini e Michelangelo Antonioni são crias de Rossellini, o primeiro aprendeu com Rossellini a facilidade de filmar o pulsar da vida, o segundo bebeu em Rossellini para compor seus austeros dramas Ãntimos; as investigações formais do francês Jean-Luc Godard não deixam de passar pelo rigor humanista de Rossellini; e o iraniano Abbas Kiarostami já confessou sua paixão de jovem pelos aspectos de filme-itinerante de Viagem pela Itália (1953), talvez o mais belo filme já feito.
Em De crápula a herói (Il Generalle Della Rovere; 1959), pertencente à penúltima fase da carreira do cineasta, antes de seu mergulho no didatismo árido, Rossellini exibe toda a complexidade e a profundidade a que ele habituou seus admiradores desde Roma, cidade aberta (1945); mas enganam-se os que pensam que complexo e profundo, no sentido em que Rossellini usa estes componentes, sejam sinônimos de difÃcil e obscuro; a câmara de Rossellini tem a facilidade de filmar, tudo se passa objetivamente e o espectador não deverá ter nenhuma dificuldade de seguir o rigor moral e estilÃstico da história contada por Rossellini; o que pode talvez atrapalhar o observador educado pelo cinema de massa de hoje (curiosamente, Rossellini, em seus primeiros anos, fez um cinema de massa fascista) é o jeito despojado e direto com que o realizador atinge a complexidade e a profundidade referidas.
Como quase todas as realizações de Rossellini, de Um piloto retorna (1942) a Era noite em Roma (1960), este De crápula a herói está ambientado na II Guerra Mundial, devastação que marcou todos os intelectuais e os artistas da geração de Rossellini; o homem Rossellini foi marcado pela violência fascista e bélica, e isto inevitavelmente se reflete em seus filmes. O grande ator e diretor italiano Vittorio de Sica interpreta um espertalhão tÃpico daqueles anos, que começa o filme iludindo e ludibriando uma garota cujo marido caiu em mãos dos invasores germânicos e deve ser fuzilado em breve. Valendo-se da simpatia que lhe tem um general alemão, a personagem de De Sica transita com desenvoltura e regalias na prisão nazista na Itália; assumindo a identidade dum herói italiano da resistência, Della Rovere, visando a identificar um chefe italiano para os germânicos, pouco a pouco a criatura vai adquirir a personalidade do herói; seu gesto final, escapando da proteção que lhe oferece o general nazista e correndo célere para a área de fuzilamento (onde o vemos de fato ser fuzilado), coroa a notável capacidade de Rossellini de iluminar as contradições humanas.
Exemplo notável de um cinema cujo rigor se perdeu nas facilidades contemporâneas, a obra-prima De crápula a herói mostra que a sedução de Rossellini, exercida na vida junto a várias mulheres agudas do meio cinematográfico, é essencialmente estética, como aquela propugnada pelo filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard em Diário de um sedutor (1843). (Eron Fagundes)