Crítica sobre o filme "Ladrões de Bicicleta":

Eron Duarte Fagundes
Ladrões de Bicicleta Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 23/03/2006

A temática de Ladrões de bicicletas (Ladri di biciclete; 1948), uma das obras-primas do neo-realismo italiano, é a miséria do povo peninsular durante a recessão que veio logo após a II Guerra Mundial; voltado para os problemas sociais de seu tempo, Vittorio de Sica logra transformar o que poderia ser um filme datado num trabalho ainda hoje cativante, graças à poderosa sensibilidade diretiva. Filiado à corrente cinematográfica neo-realista, de Sica recusou-se a fazer uma fantasia crítica convencional, com os recursos artificiosos da indústria, preferindo o despojamento pobre dos cenários naturais (extensos cortiços romanos) e atores amadores; e é a partir da utilização de atores que jamais estilizam a interpretação que o realizador chega a determinadas emoções completamente novas e desconhecidas, uma coisa que brota espontaneamente e que salta na tela como o produto oculto da vida.

O sentimentalismo de De Sica é o que separa sua obra do neo-realismo mais radical, ditado pelo italiano Roberto Rossellini: De Sica muda a crônica documental do neo-realismo em crônica sentimental. O realizador acompanha com minúcia seu infelicitado protagonista, mas não deixa de interpor entre as seqüências um jeito terno de olhar em volta. É este mesmo sentimentalismo que, em tempos mais recentes, veio tornar convencional a beleza do cinema de De Sica; no caso de Ladrões de bicicletas a paixão ingênua despertada pela história (que tem muito de fotonovela, como aquela de Toni, 1934, do francês Jean Renoir) é salva pelos elementos neo-realistas do estilo narrativo.

Desde o início do filme, a objetividade crítica está presente. Antônio Ricci está numa fila de desempregados; mas, para obter o emprego, tem de reaver, e já, sua bicicleta, penhorada numa das muitas lojas que, em épocas de crise, manejam a miséria popular. Sua mulher, Maria, decide então vender algumas roupas de cama para retomar a necessária bicicleta. Até aí, um preparativo. O ponto alto do filme começa quando alguém lhe rouba a bicicleta, enquanto estava a colar um cartaz publicitário; sua desesperada busca da bicicleta, sempre em companhia de seu filho, é umas das mais apaixonantes trajetórias humanas expostas pelo cinema.

Os episódios se aglutinam livremente ao longo da narrativa. A confusão da cena numa igreja, em que Antônio segue a pista dum velho, para chegar a um rapaz que julga ser o ladrão de sua bicicleta. Uma refeição num bar freqüentado também por ricos. O afogamento de alguém que Antônio cuidava, inicialmente, ser seu filho. E o desespero final: a acusação, sem provas, contra o possível ladrão da bicicleta; para culminar no roubo que ele, Antônio, pratica, afanando uma bicicleta parada numa calçada; perseguido, alcançado, exposto à humilhação diante de seu filho, Antônio encontra seu melancólico estado final.

As relações do garoto com seu pai, apesar do sentimentalismo de De Sica, são rudes e secas como convém a pessoas humildes. Suas andanças pela áspera Roma dos anos 40 são ligadas com um forte sentido humano e solidário pelo cineasta. Para atingir o coração de suas personagens, De Sica contou com dois atores não-profissionais extremamente sensíveis e verdadeiros, dando à sua espontaneidade o remate acabado da clareza e do vigor; as surpresas do filme nascem praticamente desta completa ausência de estilização interpretativa, mostrando uma arte que é a própria vida, sem rebuscadas imitações.

O final é antológico. De Sica acompanha a caminhada do pai e do filho no seio da multidão romana. E alterna com sabedoria as faces profundamente trágicas dos atores-personagens de sua história.