Crtica sobre o filme "Almas Perversas":

Eron Duarte Fagundes
Almas Perversas Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 24/05/2006
Fritz Lang é um cineasta alemão que nasceu em Viena, na Áustria; a influência de seu estilo particular está por toda a parte e ele é hoje uma das almas fundamentais do cinema: uma alma sombria e torturada, como é a de todo artista germânico que nasceu das sombras do expressionismo, mas capaz de oferecer um prato cinematográfico deleitoso ao espectador exigente. Almas perversas (Scarlett Street; 1945) é um dos filmes de sua fase americana e uma das realizações fundamentais de sua filmografia, uma obra onde Lang, diversamente do que ocorre no frustrado e super-estimado O diabo feito mulher (1951), logra conciliar uma aventura hollywoodiana pelo universo noir da década de 40 com seu agudo passado teutônico nas lides expressionistas dos anos 20 e 30.

Em Almas perversas o gênio narrativo de Lang se expressa contundentemente. As funções narrativas em Lang já começam na imagem como iluminação: a luz (e seu lado oculto, a sombra) é o que verdadeiramente monta a história neste policial negro que lida, de maneira criativa e profunda e sensível, com os estereótipos do gênero. Lang valorizou como ninguém os gêneros menores de Hollywood e soube dar-lhes estatura estética. A iluminação é o princípio desta estética. Lotte H. Eisner, ensaísta alemã, em A tela demoníaca (1985), básico estudo do expressionismo, observa: “Em Metrópolis, como em todos os seus filmes, Lang manipula admiravelmente a iluminação: a cidade do futuro aparece como uma soberba pirâmide, um acúmulo de arranha-céus que lançam paveias de luzes.” Parodiando Eisner, pode-se dizer que em Almas perversas é a força da iluminação de cena que acentua cada enquadramento: o jeito de revelar a luz duma rua escura, a captação peculiar dum gesto duma personagem pela modulação do tom do preto-e-branco, os contrastes de claro-escuro do delírio final do protagonista.

Fritz Lang eleva Almas perversas ao estatuto dos grandes estudos do crime e da consciência. O delírio final da personagem de Edward G. Robinson, em que em seus ouvidos martelam as vozes da mulher que ele matou e do trapaceiro que vai para a cadeira elétrica no lugar do protagonista, remete aos funestos movimentos de consciência de algumas páginas do escritor russo Fiódor M. Dostoievski; mais do que o norte-americano Woody Allen na conversa com fantasmas da criatura de Ponto final (2005), é em Almas perversas que o cinema pode tornar-se verdadeiramente dostoievskiano. Lang tem o gênio do cinema que ainda falta a Allen: é algo difícil de explicar, porque se trata duma intimidade do realizador com a imagem cinematográfica que só pode ser partilhada pelo espectador ao ver esta mesma imagem na sala escura. E mais ainda Lang atinge a culminância de sua reflexão visual sobre a culpa naqueles planos derradeiros em que bate na tela o retrato da assassinada feito pelo criminoso; ao alternar primeiros planos do retrato (como se o retrato fosse uma pessoa viva, o olhar dali emanado fixa quem o olha, o criminoso ou o espectador) com planos do olhar apavorado do protagonista, num dos mais belos jogos de plano-contraplano da história do cinema, Lang expõe o sangue da culpa humana de forma cinematograficamente antológica.

A trama policial de Almas perversas é sinuosa nas mãos de Lang: ele é formalmente perverso. Inicialmente o que o observador acompanha é a maneira como uma garota fatal, vivida por Joan Bennet, vai perturbar a tranqüilidade do velho interpretado por Edward G. Robinson, casado com uma mulher ranzinza, caixa de um banco e com um talento anônimo de pintor; logo no início do filme, o patrão do protagonista deixa uma reunião no banco para encontrar-se com uma jovem amante, a visão desta amante do patrão à janela de um carro inquieta o velho caixa, que expressa para um colega como seria bom ser amado por uma garota assim. Não seja por isto, lhe diz o acaso: cruzando uma rua à noite, nosso protagonista dá com a cena de um homem que espanca uma mulher e sai à defesa da vítima; o que segue depois é a descrição minuciosa e clara de Lang em torno da forma como um velho entre inocente e secretamente lúbrico cai no canto de sedução duma jovem, sem saber que por trás deste canto paira o cérebro do vigarista que é amante daquela mulher.

A questão da culpa em Almas perversas é bastante tortuosa e ambígua. Quem é o culpado do crime que acontece em cena? Será mesmo o velho que, ao assassinar a mulher que o engambelou, deveria pagar por seu ato, senão com a justiça humana, de que se livrou, ao menos com as torpezas de sua consciência? Pensando de outra maneira: tudo aconteceu porque o trapaceiro amante da mulher idealizou o plano de seduzir o velho: estaria assim bem posto na cadeira elétrica, embora não tivesse sujado suas mãos para matar a amante? A quem pertence o crime, a seu muitas vezes inocente agente físico ou ao produtor intelectual dos fatos, muitas vezes um sarcástico provocador de situações? Enfim, questões que só alimentam a grandeza e a complexidade de Almas perversas. (Eron Fagundes)