Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 24/05/2006
Talvez tenha sido em O desespero de Veronika Voss (Die Schnsucht der Veronika Voss; 1981) que o cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder tenha colocado sua alma de diretor de cinema com mais transparência e veracidade; mas é uma transparência e uma veracidade tortuosas, um complicado jogo de espelhos que o homem Fassbinder faz com o artista Fassbinder através das imagens cinematográficas. Veronika Voss, mais que qualquer dentre as mulheres que o realizador tenha criado na tela, representa o espÃrito de Fassbinder: o desespero e a insatisfação de Veronika são os mesmos de Fassbinder; o sentimento de peixe perdido numa sociedade sem água está tanto em Veronika quanto em Fassbinder. Ao filmar a morte de Veronika por overdose de remédios, Fassbinder está antecipando sua própria morte, um ano depois: neste que seria seu penúltimo filme, é como se o artista pudesse reconstituir com sua arte seu próprio fim. Este paradoxo de irrealidade Veronika trouxe para Fassbinder como nenhuma outra personagem poderia dar-lhe.
Veronika Voss talvez seja o mais amargo e duro dos trabalhos de Fassbinder. Longe das cores e das luzes exuberantes de Lili Marlene (1980) e Lola (1981), Veronika Voss opta por um fosco preto-e-branco que à s vezes lembra certos tons neo-realistas italianos com suas filmagens das zonas de sombras da realidade; mas a afeição expressionista do cineasta germânico permanece, e, ao retratar o universo Ãntimo bastante doloroso duma decadente estrela de cinema, Veronika Voss não deixa de prestar sua homenagem a Crepúsculo dos deuses (1950), a obra-prima hollywoodiana do austrÃaco Billy Wilder.
Um melodrama seco e distanciado, Veronika Voss, quando exibido em Porto Alegre em 1983, foi associado ao filme argentino Um inferno tão temido (1980), de Raul de la Torre, exibido numa mostra internacional de cinema alguns meses antes. A despeito de algumas coincidências do argumento inicial (um jornalista esportivo se apaixona por uma estrela de espetáculos: no argentino ele cobre turfe, no alemão não se refere o esporte; no argentino ela é de teatro, no alemão é de cinema), Veronika Voss difere bastante do filme de De la Torre: em Fassbinder a paixão do jornalista escorre platonicamente pela trama, enquanto em De la Torre tudo é vorazmente platino; as cores fortes de Um inferno tão temido contrastam muito com o preto-e-branco fugidio de Veronika Voss.
Rosel Zech é, lado a lado com a Bárbara Sukowa de Lola e a habitual Hanna Schygulla de parte substancial da filmografia de Fassbinder, outra loira fulgurante neste universo de perversidades pelo qual o diretor transita. E Rosel é outra diferença básica para com o desempenho apaixonado de Graciela Borges (lembro especialmente de um alucinado primeiro plano de seu rosto assim que o amante de sua personagem a abandona) em Um inferno tão temido: Rosel afunda-se com sua personagem num desespero gelado. Como geralmente ocorre nas tramas do cineasta alemão, os homens (mesmo os apaixonados, como este jornalista que segue os passos de sua estrela) são figuras cinematográficas apagadas, o que não é o caso de Alberto Mendonça em Um inferno tão temido. Aquelas cenas no inÃcio em que ele oferece à estrela seu guarda-chuva (proteção da chuva, proteção na vida), é a imagem em que o espectador pode ter maior contato com a pobre alma desta personagem: o mais do filme é voltado para a voltagem de abismo de Veronika Voss, tornando-se o homem um espectador como outros desta degradação escadaria abaixo. (Eron Fagundes)