Crítica sobre o filme "Profissão: Repórter":

Eron Duarte Fagundes
Profissão: Repórter Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 08/06/2006
Há um hiato de dezoito anos. Era uma sessão da meia-noite, no cinema Bristol de Porto Alegre, em fevereiro de 1979. Um espectador de vinte e três anos, pouca bagagem cinematográfica, muita literatura na cabeça, começava a interpretar o universo do cineasta italiano Michelangelo Antonioni a partir de um de seus filmes mais estranhos: O passageiro, profissão: repórter (The passenger; 1975).

O mesmo espectador, em junho de 1997, quarentão, revê a fita na Sala Eduardo Hirtz da Casa de Cultura Mário Quintana, na mesma Porto Alegre: uma peculiar noite quente de entrada oficial de inverno gaúcho.

No último Antonioni lançado nos cinemas, a obra-prima Além das nuvens (mais recentemente se viu uma esquálida sombra de seu talento num dos episódios de Eros, 2004), o diretor de cinema vivido por John Malkovich propunha algumas chaves para a interpretação do cinema do mestre italiano: um artista da imagem deve buscar a imagem última, a que fica por trás de todas as outras imagens, a que nosso mundo real aparente não tem acesso. Antonioni fala da imagem em si, da imagem essencial.

Antonioni é um cineasta das abstrações. O longo plano-seqüência que dá cabo de Profissão: repórter (a cena-epílogo que vem depois, um plano fixo, é somente isto, um epílogo para que corram os créditos finais) é uma das maiores demonstrações de como o realizador abstrai todo o significado visual para deixar na tela tão-somente momentos abstratos, a imagem pura. Que é que se passa ali? No começo do plano, Jack Nicholson deita-se na cama; a câmara enquadra a grade do quarto e, cenário fixo, observa a entrada e saída de cena de personagens diversos: Maria Schneider entra e sai do quadro, um cão aparece e desaparece, um velho sempre lá no fundo da objetiva, depois vem a polícia, não se estende bem o que está acontecendo porque o que está acontecendo é que Antonioni transformou sua trama policial numa abstração estilística. O que interessa aqui é a relação da câmara com o cenário, e as próprias personagens, abstraídas de seu conteúdo, são cenário.

A morte de Nicholson é estética. Mas Antonioni insere uma rebelião africana. Há até uma seqüência documental em vídeo em que se filma uma execução: a imagem é fosca, a câmara treme. Se o passatempo de Nicholson é elíptico, o do negro africano é nublado, não se vê direito. Entre estes dois pólos gravitam as preocupações de Antonioni.

A observar igualmente a grande beleza plástica de algumas imagens antonionianas: a de Nicholson pairando de braços abertos sobre Barcelona e a de Maria Schneider filmada dentro de um carro, de costas para o motorista, seu corpo parece ser devassado por um túnel de árvores.

Valendo-se da purinha safada de Bernardo Bertolucci em O último tango em Paris (1972), La Schneider, e do tresloucado-irreverente de Milos Forman em Um estranho no ninho (1975), Mr. Nicholson, Michelangelo Antonioni faz um filme em que sua estrela como diretor de cinema brilha bem mais do que estes ícones do cinema da década de 70, especialmente definidos e caracterizados nos dois filmes que citei, um Bertolucci inovador e um Forman iconoclasta e simbólico. Bem, o ventilador que em O eclipse (1961) folheava as páginas de um livro agora está no texto dum quarto de hotel em Profissão: repórter. Antonioni age como Maria Schneider quando Nicholson lhe pede para olhar pela janela e dizer o que vê; fixa o cenário, descreve o gesto cotidiano e dá-lhe um sentido patético, absurdo, aproximando-se às vezes à literatura de Franz Kafka (estou de volta a meus literários vinte e três anos). (Eron Fagundes)