Crítica sobre o filme "Sal de Prata":

Rubens Ewald Filho
Sal de Prata Por Rubens Ewald Filho
| Data: 08/06/2006

Parece um filme francês intelectualizado dos anos 80. Daqueles que interessam apenas aos amigos de um certo cineasta. Mas na verdade, é um filme gaúcho que foi mal recebido no último Festival de Gramado (onde lhe deram como consolação, o prêmio de melhor montagem para o bem-quisto Giba Assis Brasil).

Não sei o que atrapalha mais, se sua falta de sentido, ou sua pretensão. A seqüência inicial que mostra Camila Pitanga tendo um orgasmo (não se vê grande coisa mas é uma cena fortinha) no fundo só existe como réplica aos exibidores e distribuidores do filme anterior de Gerbase, “Tolerânciaâ€, 2000, que deixou de atrair adolescentes porque ele recusou cortar uma cena forte que lhe proibiu a fita para menores. Um inside joke que também é pirraça. Enfim, o diretor parece se importar pouco com o espectador porque conta uma história sobre o ambiente dos cineastas gaúchos, que não podem ser tantos, dadas as condições precárias em que vivem o nosso cinema.

Assim, usando uma estrutura clássica de enquête sobre alguém que morreu, estilo Cidadão Kane, é sobre um diretor de curtas, Rudi Veronese (o gaúcho Marcelo Breda que teve certo sucesso depois do filme Feliz Ano Velho) que morre inesperadamente durante uma reunião/discussão da classe. Sua namorada, a sempre deslumbrante Maria Fernanda Cândido, entra em crise, com ciúmes retrospectivos da atriz preferida dele (Camila, que até se sai bem em vários personificações) e remexendo nos textos que encontra do falecido, alguns roteiros que vários colegas se interessam em filmar (como se fosse tão fácil assim).

Ocorre até briga com eles, porque um destes, começa e interrompe a filmagem, até a própria Maria Fernanda resolveu assumir a adaptação. O titulo poético do filme alias se refere ao próprio cinema, já que as antigas películas continham esse componente, sal de prata.

E o filme propõe também uma discussão entre o fim da película e começo do cinema digital (certamente um assunto que arrebatará multidões). Engraçado que quando um filme começa tropeçando difícil recuperar-se e isso não sucede aqui, onde os diálogos e as situações e principalmente a metalinguagem vão ficando cada vez mais absurdas e aleatórias. Outro filme brasileiro que vai passar em branco. (Rubens Ewald Filho na coluna Clássicos de 27 de setembro de 2005)

Leia também outra opinião, a do colunista Eron Fagundes, na coluna Cinemania de 3 de outubro de 2005::

Esnobado pelos “donos da verdade da crítica cinematográfica brasileiraâ€, Sal de prata (2005), filme rodado pelo gaúcho Carlos Gerbase, é o ponto da maturidade criativa do realizador de Inverno (1983) e Tolerância (2000). É cinematograficamente sua obra mais avançada; infelizmente caiu num tempo em que se prefere louvar a mediocridade e tachar qualquer invenção de pretensão: Gerbase não é nenhum pretensioso, como chegaram a aduzir: sabe o cinema que quer fazer e o faz com uma naturalidade que escapa à miopia de alguns. É um belo filme no momento errado do cinema brasileiro; como o são O cárcere e a rua (2004), de Liliana Sulzbach, e Jogo subterrâneo (2005), de Roberto Gervitz, duas experiências fílmicas que contrariam os obtusos padrões críticos de hoje e parecem permanecer à sombra da vitrine elaborada por certos “ilustres pensadoresâ€; espera-se que o futuro possa corrigir estes equívocos.

Gerbase cruza a vida e o cinema em seu filme de uma maneira preciosa, brilhante mesmo. Como ocorria em O show deve continuar (1979), do norte-americano Bob Fosse, um diretor de cinema, estressado por suas relações profissionais e sentimentais, Rudi Veronese, no início do filme de Gerbase vai deflagrar uma investigação sobre sua vida de artista e homem, movida especialmente por sua namorada Cátia, mas circundada por seus amigos do cinema e também por sua atriz e possível amante Cassandra. A teia de filmes dentro do filme se mistura com as teias amorosas sem nenhum esforço narrativo, pois Gerbase domina seu ofício; apesar de falar da confusão das cabeças das pessoas, Gerbase em momento algum perde o fio de seu raciocínio estético, oferecendo ao espectador um espetáculo tão sinuoso quanto claro em seu descortinar de metáforas visuais.

Brincando com o próprio conhecimento do fazer cinematográfico, Gerbase nunca é árido, pois usa com habilidade os elementos comerciais e artísticos de que dispõe: Camila Pitanga abre o filme num primeiro plano de seu rosto e seus ombros nus simulando um orgasmo (felação ou masturbação?) em que diz um texto que ironiza a censura etária; depois é Maria Fernanda Cândido quem vai conduzir, mais com sua beleza e a hábil direção de Gerbase do que com seu poder de intérprete, as complexidades (que provocativamente aqui e ali se superficializam) da trama.

Cheio de citações cinematográficas, com cartazes de filmes aparecendo insistentemente nas imagens (o famigerado Cidadão Kane, 1941, do americano Orson Welles, à frente) e a referência nos diálogos diante do volume do livro-roteiro em espanhol do filme Interiores, 1978, do americano Woody Allen), Sal de prata busca uma aproximação musical em sua narrativa, titulando seus capítulos de andante, adágio, largo, allegro; do ponto de vista da textura dos enquadramentos a musicalidade de Gerbase é discutível, mas sua insistência em atulhar a faixa sonora da solenidade dos clássicos é constantemente incômoda por destoar da linha do filme. Porém, trata-se dum senão pequeno, nunca chega a prejudicar o resultado final da realização.

O descaso com Sal de prata é injusto, especialmente quando se sabe que o jornalismo cinematográfico oficial bravateia muitas vezes em defesa de filmes de passagem.