Crítica sobre o filme "Persona":

Eron Duarte Fagundes
Persona Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 24/06/2006
O que surpreende o espectador ao ver ou rever um filme do realizador sueco Ingmar Bergman é observar como a expressividade de imagens tão finamente elaboradas mas igualmente despojadas e a reboque de métodos estilísticos que se repetem: dizia que surpreende ver estas imagens explodirem em expressividade na retina do cinemaníaco. Persona (Persona; 1966) é um dos momentos mais brilhantes do cineasta, em que o rigor de sua concepção formal se casa com a exigência e intimidade na direção de atores para produzir uma obra estranha, que extravasa de seu intimismo inicial para revelar-se uma aguda reflexão cinematográfica, com anotações próprias dos anos 60.

O filme se abre e fecha de maneira semelhante: mostra em rápidas imagens negativos e projetores e filmezinhos estranhos. As cenas estranhas, intercaladas na narrativa, são assim, fugazes, duram pouco na tela, parecem estar ali para provocar o olhar do assistente, cortam a ilusão cinematográfica, estabelecem a metalinguagem. O filme em si é narrado em longos primeiros planos, como aquele primeiro plano do rosto de Liv Ullmann quase ao início em que o jogo de sombras contracena com a expressão facial de Liv: a câmara de Bergman detém-se na face humana, é o rosto que narra. O procedimento do rosto narrativo seria radicalizado nos filmes da fase final da carreira do diretor de Sonata de outono (1978) e Da vida de marionetes (1980).

Em Persona Bergman estabelece um dos muitos notáveis duetos de atrizes, que atravessam sua filmografia de O silêncio (1962; Ingrid Thulin e Gunnel Lindbloon) a Sonata de outono (Liv Ullmann e Ingrid Bergman). A mudez da personagem de Liv contrasta com a tagarelice da criatura vivida por Bibi Andersson; as personalidades de uma e de outra se vampirizam, a doente Elizabeth Vogler tem em certos momentos um comportamento mais sadio que o da sua enfermeira Alma, o isolamento numa casa de praia leva as duas mulheres a exporem os dois lados do cinema de Bergman, o lado emudecido e feito só da impressividade das imagens e o lado tagarela e teatral feito de texto e muita conversa psicanalítica (de certa maneira antecipando as fitas posteriores a Gritos e sussurros, 1972).

Bergman expõe em seu filme algumas chagas intelectuais da época em que rodou o filme. O homem que protesta queimando-se em público, apavorando Elizabeth que vê a tudo pela televisão (ela recua contra a parede, amedrontada), é uma referência política. O cineasta repete uma seqüência inteira confessional (aquela em que a enfermeira expõe a ferida maternal de Elizabeth) só para alterar o ponto de vista da câmara: o que antes mostrara a face de Liv enquanto Bibi destila o fel da enfermeira em voz off agora é mostrado o mesmo texto acompanhando o rosto de Bibi falando interminavelmente enquanto a face de Liv é vista de perfil, elemento secundário no quadro, e vice-versa: se a cena anterior tinha Liv fora do quadro, agora reproduz o mesmo texto acentuando a reluzente expressão da atriz a receber o impacto das palavras da outra. Parece O anjo exterminador (1962), do espanhol Luis Buñuel? Ou é uma angústia autofílmica, como em Oito e meio (1963), do italiano Federico Fellini?

Se Fellini conclui seu filme com a desmontagem do cenário da autofita irrealizada, Bergman termina abruptamente Persona levando a imagem da tela para a cabina de projeção, em que o rolo de celulóide se perde no projetor, destruindo as imagens e ferindo a visão do espectador. O que nos surpreende é ver como Bergman continua a surpreender-nos com estas eternas reencenações das queimações da alma. (Eron Fagundes)