Crítica sobre o filme "Martha":

Eron Duarte Fagundes
Martha Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 24/06/2006
Martha (1973) foi rodado no mesmo ano de O medo devora a alma (1973); este tratava dos preconceitos raciais e etários que nublam as relações humanas, aquele se voltava para o retrato duma mulher alemã de classe média cuja personalidade era oprimida pela personalidade do marido. O medo devora a alma goza de elevado conceito na filmografia de seu autor, enquanto Martha é pouco conhecido, não me lembra de tê-lo visto nem mesmo nas sessões do Instituto Goethe que eu freqüentava apaixonadamente nos anos 70 e 80. Daí a fundamental importância do lançamento em dvd de Martha pela Versátil: é mais um belo retrato de mulher germânica que o realizador Rainer Werner Fassbinder compõe como ninguém em imagens em movimento; ele é o Balzac do cinema alemão, por sua prolificidade, por seu senso de desenho das mulheres, por sua afeição ao melodrama, por sua estética pessoal e criativa tão grande quanto a do escritor francês Honoré de Balzac na literatura francesa do século XIX.

Desde o começo de seu filme, Fassbinder expõe em imagens desglamurizadas para acompanhar a trajetória de Martha, a morte de seu pai enquanto ela e ele viajavam descontraídos pela Itália, a demência de sua mãe (acentuada depois que ficou viúva), o casamento com um homem que vai anulá-la até aquele final tão realista quanto simbólico em que ela, depois dum acidente de carro, está numa cadeira de rodas e é conduzida pelo estranho esposo saindo do hospital: na verdade, desde o início do matrimônio ela era como uma paralítica, só andava pelos passos que ele determinava, nas poucas vezes em que ela tentou tímidas rebeliões (como a rejeição a um livro de engenharia que ele lhe dera para ler em uma semana) a barra pesou e ela recuou (acabou por decorar pateticamente as frases do livro, por exemplo, e pôr na vitrola o disco que ele lhe aconselhara a ouvir no lugar das porcarias de que ela gostava). Como em todos os seus trabalhos, Fassbinder é impiedoso em sua visão das relações inter-pessoais; Martha pode não ter o arrebatamento de cores e cenários de Lola (1981), a ajustada estilização de Effi Briest (1974; é em Martha que, quase ao fim, Fassbinder usa com rigor plástico a filmagem no espelho, recurso levado às últimas conseqüências em Effi Briest) ou mesmo o fascínio subterrâneo de Lili Marlene (1980); mas reserva para o observador a mesma dose de emoções desajeitadas que Fassbinder despejava em suas tão características encenações cinematográficas.

Fascinado pelos melodramas rodados em Hollywood nos anos 40 e 50 pelo alemão Douglas Sirk (há numa linha de diálogo do filme a referência a uma rua Douglas Sirk), Fassbinder adultera o melodrama clássico pela desglamurização formal e temática: o esquema de produção na Alemanha dos anos 70 e o desengonçado de certos pólos melodramáticos situam Fassbinder longe dos plagiadores sem criatividade. Ele é definitivamente um autor.

Descobre-se nos extras deste Martha colocado no mercado pela Versátil que a trama desta realização estaria inspirada no relacionamento conjugal dos pais de Fassbinder; quem revela isto é o ator Karlheinz Boehn, o mesmo que nos anos 50 esteve no elenco das super-produções da série Sissi, de Ernst Marischka, e que em Martha vive o inusitado marido da protagonista. Assim, Martha seria a visão que o artista Fassbinder adotara para expor o que o menino Fassbinder teria presenciado no lar de seu pai e de sua mãe. Margit Carstensen como Martha tem outro destes desempenhos tão sedutoramente patéticos que Fassbinder sabia extrair de suas atrizes. Já que a Versátil está nesta trilha apaixonante de recuperar a obra de um dos maiores do cinema teutônico fica minha modesta sugestão: seriam urgentes os lançamentos de Effi Briest e Berlin Alexanderplatz (1979), talvez as duas maiores obras-primas duma carreira pontilhada de obras-primas. (Eron fagundes)