Crítica sobre o filme "Brutalidade":

Eron Duarte Fagundes
Brutalidade Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 10/07/2006
Trata-se de um dos mais belos filmes de prisão rodados pelo cinema americano: Brutalidade (Brute force; 1947) alia com perfeição a tensão obscura da atmosfera duma prisão com uma engenhosa e subliminar observação sobre a sociedade americana como um todo; a linha estética adotada pelo realizador estadunidense Jules Dassin não tem nenhuma relação com os filmes de prisão pasteurizados e repletos de clichês em que Hollywood se especializou em muitas décadas. O fato é que Brutalidade pertence àquele momento de pico do cinema de Dassin, de que Cidade nua (1948), reprisado há pouco em Porto Alegre numa mostra, é outro representante elevado: tanto Brutalidade quanto Cidade nua utilizam o visual e a linguagem dos policiais negros, a baixa visibilidade do conteúdo do quadro, a poesia nebulosamente hipnótica da imagem, a trama em que ação e reflexão se põem em equilíbrio; ambos os filmes trazem fortes conotações sociais para o gênero policial, ocorrendo que esta conotação é mais forte em Brutalidade; uma diferença essencial, notada logo de cara, é que Brutalidade abdica da voz-over que percorre os caminhos nova-iorquinos de Cidade nua; assim, Brutalidade é um jogo mais direto, mais “brutal†com o espectador.

O diretor e roteirista norte-americano Richard Brooks é um dos que assinam o roteiro; assim, pode-se ver nos exercícios temáticos de Brooks em Brutalidade uma antecipação de sua visão do universo criminoso ianque retratado de maneira duramente realista em A sangue-frio (1967) a partir de um romance de Truman Capote; os presos que querem fugir em Brutalidade são esboços das figuras dos criminosos do Kansas que Brooks depois transformaria em criaturas definitivas do cinema.

Saliente-se também o barroquismo da música do húngaro Miklós Rozska que sublinha com ajuste as sinuosas trilhas visuais de Brutalidade; Rozska faria também a partitura de Cidade nua, outra produção de Mark Hellinger, que em Cidade nua expôs seu narcisismo ao fazer a voz-over, uma espécie de costura incômoda das imagens.

Brutalidade é um filme sobre a sociedade, sobre os descaminhos do sistema penal, sobre o eterno desejo de fuga dos aprisionados. Com as câmaras e as personagens encerradas no cenário concentrado da prisão, são os flashbacks de memória (aquilo que os presos evocam como histórias de suas vidas anteriores lá fora) que permitem uma breve abertura, uma fuga ao irrespirável que o observador sente como se fosse um dos prisioneiros; neste aspecto de amostras da vida lá fora, ou o que levou tal preso a parar ali, Brutalidade poderia fazer-nos lembrar certos cruzamentos de Carandiru (2003), filme brasileiro de Hector Babenco, também um filme de prisão, mas não um policial negro como a realização de Dassin; como em Carandiru, há em Brutalidade um médico, não tão “lúcido†como a personagem de Babenco, muito mais um “bêbado e um sonhadorâ€, mas é este médico quem, no plano final, se vira e caminha para a câmara, como falando para a platéia: “Ninguém escapa de verdade.†É a palavra deste médico louco quem vai revelar a lucidez de Brutalidade, a verdade de que nenhum preso escapa: não se escapa, mas por que se está sempre tentando? É este o pensamento do filme, é esta sua indagação perplexa: e tudo vem da boca da personagem mais desmiolada, esta insana lucidez.

As cenas de violência de Brutalidade talvez fossem muito brutais e diretas na década de 40, mas nestes anos em que se mostram sangue e vísceras, uma cena como aquela do delator que é cercado por seus companheiros diante duma prensa onde o delator cai e é esmagado, hoje em dia é tida como uma elipse, a câmara se encabulou diante do corpo triturado da personagem e evitou a visão; mesmo as cenas em que o policial tortura o preso para que ele delate todo o plano de fuga de que o policial já sabe uma parte, apenas em parte perturba os olhos do espectador atual.

Para concluir, evoco como comparação outro clássico de filme penitenciário: A um passo da liberdade (1959), o último trabalho feito pelo cineasta francês Jacques Becker. Como Brutalidade, a realização francesa vai à prisão e observa um plano de fuga; mas se Brutalidade expõe blocos de ações dramáticos mais exteriores, em Bekcer há uma interioridade francesa a que um americano como Dassin não pode aspirar; em contrapartida, Dassin exibe um lastro social (um pouco ajudado pelo roteiro de Brooks) de que Becker está longe. Um estudo comparativo dos dois filmes poderia servir para estudar as dessemelhanças entre as cinematografias americana e francesa: não escapamos disto. (Eron Fagundes)