Crítica sobre o filme "Cárcere e a Rua, O":

Eron Duarte Fagundes
Cárcere e a Rua, O Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 14/07/2006
Num tempo em que a falsificação impera (e muitas vezes esta falsificação se traveste de posições aparentemente corretas, como é o caso do filme Vozes inocentes, 2004, dirigido pelo mexicano Luis Mandoki), uma realização cinematográfica como o documentário O cárcere e a rua (2004), rodado pela gaúcha Liliana Sulzbach, deve ser festejada a plenos pulmões pelo cinemaníaco. O filme de Liliana merece que se vença o habitual preconceito do público contra o cinema documental; à medida que o espectador de sempre do cinema de ficção identificar na narrativa de Sulzbach pontos de contato emocionais com aquele jeito que têm os bons cineastas de humanizar cada pedaço de celulóide que ilumine uma imagem humana (o rosto, o corpo, a voz), a descoberta desta fita rara do cinema nacional se dará naturalmente.

Para captar a realidade interior de três presidiárias cujos destinos se aproximam e se afastam entrelaçando-se na teia narrativa proposta, Liliana rodou seu filme de outubro de 2001 a abril de 2004, buscando transformar em imagens a evolução real destas criaturas deserdadas e marginais; como disse a própria cineasta, houve certas coisas que só a convivência dela, diretora, e da câmara com as pessoas encenadas poderia revelar; este tempo real da convivência aparece na habilidade com que Sulzbach monta sua película.

Cláudia, Betânia e Daniela são as presas focadas pela câmara compassiva e compreensiva de Liliana. Cláudia é uma veterana condenada por latrocínio e que está prestes a ser solta. Betânia começará logo seu tentador regime semi-aberto. E a jovem Daniela, acusada de assassinar seu próprio filho (um bebê) e grávida de mais um infante, está entrando apavorada no mundo do cárcere. As primeiras imagens da fita mostram Cláudia logo que sai da prisão, dentro dum ônibus, descendo do ônibus, andando pelas ruas perguntando pela parada duma linha de ônibus que a conduzirá a algum lugar; é o estado de perdida nas ruas de quem é recém-saído da prisão, o que estas imagens iniciais mostram. Daniela apavora-se com a cela, normal, nunca enfrentou esta situação, mas logo se acostuma, inclusive com sua loucura e o manicômio judiciário (previsão que a experiência desolada de Cláudia cantara antes para o espectador). É entre o pavor da falta de liberdade e o tatear no escuro duma liberdade sem rumo que transita o pensamento de O cárcere e a rua sobre suas pobres personagens. Há certas coisas que o documentário não diz explicitamente, mas suas imagens (ou o desenvolvimento destas imagens) permitem depreender: o lesbianismo de Betânia na prisão é eventual e fruto da falta de opção, uma carência, uma incapacidade de sossegar-se só do indivíduo Betânia; observando-a lá fora, a câmara de Liliana surpreende-a sempre envolvida com homens, mesmo que logo os deixe sob o argumento de que “homem não prestaâ€.

O cárcere e a rua é o desenho momentâneo e espontâneo de três vidas perdidas nos rumos da sociedade contemporânea. A narrativa de Liliana não investiga seus passados (não lhe interessa os crimes que cometeram), não projeta seus futuros: as histórias de Cláudia, Betânia e Daniela são suspensas no fim da projeção como incógnitas em que se converte a vida de qualquer ser humano quando paramos para analisá-la num ponto de sua trajetória. (Eron Fagundes)