Crítica sobre o filme "Dançando no Escuro":

Eron Duarte Fagundes
Dançando no Escuro Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 18/07/2006
O dinamarquês Lars Von Trier pertence à estirpe dos grandes cineastas que voltaram suas câmaras para a observação semidocumental do patético do sofrimento humano. O também dinamarquês Carl Thordor Dreyer e o francês Robert Bresson percorriam caminhos semelhantes ao de Von Trier, cuja essência moderna de filmar atualiza os arcaísmos do cinema da alma. A estranheza e a inquietude do universo cinematográfico deste realizador nórdico atinge um de seus agudos e perturbadores climas em Dançando no escuro (Dancer in the dark; 2000), onde tudo aquilo que o espectador espera dos gêneros encenados (o melodrama, o musical, o policial, o filme de tribunal) é desmontado para gerar uma linguagem específica onde elementos melodramáticos, policiais, musicais e forenses se agregam na montagem tão elaborada quanto revolucionária de Von Trier.

A personagem da mãe cega que junta dinheiro para a operação de visão de seu filho e mata o homem que a rouba, indo ela parar na prisão, nos tribunais e na forca final, é mais uma destas criaturas diferenciadas e humilhadas por sua própria loucura que Von Trier traz para diante das câmaras. A mulher que teve seu pequeno filho morto em Os idiotas (1998) e, mergulhada em sua idiotia, parece ser salva por sua própria demência. As humilhações sexuais a que, por amor, se submete a garota de Ondas do destino (1996). A mulher que presta serviços domésticos a toda uma comunidade americana em Dogville (2003) e Manderlay (2005). Um mundo onde existir é ser pisoteado pelo outro: eis como Von Trier vê nossa existência, antes mesmo de debruçar-se sobre sua odiada América em sua recente e ainda incompleta trilogia. A Selma de Dançando no escuro será enforcada, não resta outra solução para seu melodrama, todos sabemos disto; o que não sabemos é a profundidade e o engenho com que Von Trier vai desenhar em quadros cinematográficos instáveis (a câmara digital radicaliza a questão da câmara na mão, os movimentos de câmara são bruscos, rudes e desfocados, os primeiros planos são dúbios e agressivos numa colagem voraz às personagens e aos cenários) o calvário de Selma, uma digna descendente da Joana d’Arc de Dreyer e do jumento Baltasar de Bresson.

Von Trier está hoje certamente no auge de sua arte. A utilização dos elementos policiais adquire um notável veio amadorístico que o rigor duro de O elemento do crime (1984), um de seus trabalhos iniciais, evitava. É agora que a genialidade de Von Trier está solta: seria bom rever Europa (1991) para comparar.

Björk, a cantora irlandesa, esplende em seu delírio patético ao longo de Dançando no escuro, cujas inserções musicais, alinhadas com a inspirada descontração de quem não sabe jogar um musical clássico (só sabe inventar jogos: as formas novas a que se referia uma personagem de Orson Welles), são um tributo tanto a Björk quanto à francesa Catherine Deneuve, que no papel de amiga e colega de fábrica de Selma (como Kathy) remete ao clássico musical francês Os guarda-chuvas do amor (1964), de Jacques Démy. Tão ingênuo quanto revolucionário, com um pé na alma primitiva da criança que Von Trier foi, outro pé no avançado cérebro cinematográfico que ele é, Dançando no escuro é um dos picos do cinema nesta primeira década do século XXI. (Eron Fagundes)