Crítica sobre o filme "Lola":

Eron Duarte Fagundes
Lola Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 18/07/2006
O deslumbramento cromático de Lola (Lola; 1981), do alemão Rainer Werner Fassbinder, vai atingir fortemente o espectador desde as primeiras imagens, quando, após uma cena fotográfica em preto-e-branco sublinhada por uma canção-off, surge uma exótica e colorida apresentação de créditos em que se precisa aguçar a vista e a atenção para entender o que vai escrito na tela. O cromatismo de Lola está na própria raiz da linguagem de Fassbinder neste filme: a tensão de cores e iluminação chega a ser mágica quando, ali mesmo pelo início da narrativa, Lola está cantando no cabaré; seu figurino extravagantemente vermelho combina com as demais cores e luzes deste quadro que nos arrebata.

O cinema alemão tem perdido seu espaço nas discussões cinematográficas de hoje e os realizadores revelados por aqui estão longe daqueles soberbos artistas que dirigiriam filmes a partir das décadas de 60 e 70. Fassbinder é um dos grandes cineastas desta geração. Seu Lola está dedicado a Alexander Kluge, talvez o maior cérebro produzido pela sétima arte na Alemanha.

Na verdade a história contada em Lola se parece com aquela que o francês Robert Bresson transformou em imagens em As damas do bosque de Bolonha (1944). No filme de Fassbinder, um administrador público recém-chegado e com muita vontade de pôr ordem na casa passa a flertar com uma garota e vem a apaixonar-se por ela; entra em pânico quando descobre que ela é Lola, uma prostituta que dança e canta e se vende num bordel. Se Bresson desvia a reflexão de sua narrativa para a salvação espiritual, Fassbinder dá a seu filme uma conclusão cínica e perversa. A lama do espírito de Fassbinder é muito maior.

Fassbinder não se relaciona de maneira alguma com a arte de Bresson. Os pontos de contato entre as tramas analisadas no parágrafo anterior devem ser tidos por coincidência. Um certo barroquismo, o refinamento de cenários, o próprio título do filme, a identidade da protagonista, tudo conduz a Lola de Fassbinder a situar sua obra-prima nas ilustres sombras de Lola Montès (1955), de Max Ophüls, um dos mais agudos retratos de meretriz que o cinema trouxe à luz. Fassbinder refaz os melodramas de Ophüls, repassados por influências mais fáceis de assimilar herdadas do alemão radicado em Hollywood Douglas Sirk. Lola é este conjunto desvairado de estéticas que se superpõem, se entrecruzam e se dilaceram nas mãos exasperadas de Fassbinder. Exasperação que ele passa ao espectador.

A alemã Bárbara Sukowa (que seria a Rosa Luxemburgo de Margarethe von Trotta) dá uma potência admirável à protagonista de Fassbinder. Armin Mueller-Stahl, que viveria para Alexander KLuge o cineasta cego num episódio perturbador de O ataque do presente contra o restante do tempo (1985), compõe um complexo servidor público, cuja resistência à corrupção se converte num projeto quixotesco. E também Mario Adorf como o chefe de polícia despudorado (o Mario Adorf de O tambor, 1979, de Volker Schloendordd) é uma interpretação exemplar, vigorosa. Vigor é o que há de sobra em Lola.

O filme de Fassbinder é uma visão extremamente lúcida e bem-sucedida dos caminhos da sociedade contemporânea. Quando a película passou por aqui em 1986, as anotações que fiz foram evasivas, reticentes, revelando incompreensão para com as intenções cinematográficas do realizador. Revendo Lola em dvd, o rumo de meu pensamento mudou; compreendi Fassbinder e deliciei-me com sua salada de cores.

Fassbinder sempre soube expor em imagens a força íntima da mulher alemã. Effi Briest (1974) é seu trabalho mais radical e belo, Hanna Schygulla desfila ali uma personagem impagável contracenando com espelhos. Lola é do mesmo naipe. (Eron Fagundes)