Crítica sobre o filme "Cenas de um Casamento":

Eron Duarte Fagundes
Cenas de um Casamento Por Eron Duarte Fagundes
| Data: 18/07/2006
Cenas de um casamento (Scener ur ett Aktenskapp; 1974) é uma grande novela cinematográfica onde o cineasta sueco Ingmar Bergman se deleita na trivialidade dos sentimentos humanos; rodada para a televisão em seis episódios com cerca de cinqüenta minutos cada um que depois teve uma remontagem nos cinemas que comprimiu bastante a descarga emocional dos dois protagonistas do drama conjugal, esta produção chega agora ao suporte em dvd com sua metragem integral. Não creio que o filme se altere essencialmente nas percepções que se possa ter dele; mas sim permite um contato mais amplo com os lugares-comuns do casamento que Bergman se esmerou em reproduzir em imagens tão contidas, aparentemente imóveis e certamente verdadeiras.

É o mais dialogado dos filmes de Bergman e a mais direta de suas narrativas; não fosse Bergman um realizador muito diferente, eu poderia buscar a equivalência de Cenas de um casamento na obra do diretor francês Eric Rohmer: dialogação desenfreada, precisa marcação dos atores, despojamento absoluto da câmara, da montagem e dos cenários. Ao longo de suas intensas horas, Cenas de um casamento vai exigir de Erland Josephson e Liv Ullmann o máximo de veracidade e de seu domínio da interpretação para interessar o público: ajudados pelo rigor e pela amorosidade diretivos de Bergman, os intérpretes atingem um bom termo, impedindo de certa maneira a sombra do “cansaço artístico†que pairou no universo cinematográfico do cineasta depois de Gritos e sussurros (1972), incluindo os filmes Cenas de um casamento, A flauta mágica (1975), Face a face (1976) e O ovo da serpente (1979), sendo a exceção a obra-prima Sonata de outono (1978). Cenas de um casamento sobrevive basicamente pela grandeza do dueto de atores e pela transparência e entrega dos diálogos, onde o derramamento emocional está a um passo do gratuito mas nunca se descontrola porque o cérebro de Bergman executa uma sempre aguda psicanálise do casamento da década de 70 que acaba servindo para qualquer década, anterior e posterior.

De uma certa maneira, a situações infernais do casamento (ou de qualquer convivência entre o homem e a mulher) já rondavam Bergman ainda nos anos 50, revelando as migalhas sentimentais do professor Isak Borg e de seu filho no antológico Morangos silvestres (1958). Em Gritos e sussurros os casamentos também são uma barra, chegando uma criatura a ferir com vidro seus genitais para mostrar o sangue a seu marido. Os dilemas conjugais do século XX e a maneira como eles refletem a inquietação do homem de nosso tempo atingiram sua curvatura de modernidade em Viagem pela Itália (1953), do italiano Roberto Rossellini: à sua maneira, Cenas de um casamento é um dos herdeiros desta metafísica conjugal; não tem a agudez de A noite (1960), do italiano Michelangelo Antonioni, mas é um belo exemplar de como encenar o cotidiano de um casal: a aparência feliz, as dissenções que surgem, a separação, os amantes (citados e nunca em cena), os eternos retornos. Reclamou-se na época da ausência do papel dos filhos no casamento, mas Bergman alegou que esta era a história que ele quis contar: o distanciamento com os filhos talvez seja uma questão sueca no roteiro de Cenas de um casamento assim como está, uma grande elipse filial numa tergiversação tão longa. Depois de brigas inomináveis, parece meio contraproducente que Bergman encaminhe o gesto final de seu filme para uma solução açucarada, os dois pombinhos se enleando amorosamente; não me parece que esta finalização tenha o mesmo sentido e o esplendor de choque visual daquele dia ensolarado num parque que vai desfazer, na imagem última, os sombrios fios narrativos de todo Gritos e sussurros. Em Cenas há mais uma vontade de ajeitar as coisas, como se estivesse ajeitando a vida: algo longe das metáforas e símbolos que Bergman exercitou em seus melhores filmes.

A despeito de tudo, é uma paixão o reencontro com as personagens dilacerantes de Cenas de um casamento. É aquela coisa de expressividade da imagem cinematográfica de Bergman. Ele nos coloca diante de um outro olhar das coisas. Ele, um homem de cinema, que faz cinema e vê cinema, que num de seus escritos nos ensina: “E a emoção que sinto continua a ser a mesma, embora veja cinema há sessenta anos.†(A lanterna mágica, 1987). (Eron Fagundes)